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A terceirização da cena

Dois "auxiliares de personagem" e Massa com jornal
Foto: Elenize Dezgeniski


Por Valmir Santos

Quer em projetos paralelos quer a bordo do coletivo Rimini Protokoll, o suíço Stefan Kaegi tem disseminado, desde a década passada, a incorporação de não-atores em seus trabalhos – performances ou intervenções ao ar livre ou convertidas para o palco. Motoristas de caminhão, ex-policiais, funcionários aposentados da ferrovia, porteiros, enfim, uma galeria diversa já protagonizou suas criações. O núcleo Cães Lacrimosos nos faz lembrar alguns procedimentos daquele europeu em
Compra de Personagem - Segunda Ação de Classificados. Profissionais de venda, treinamento pessoal, domésticas e estagiários são chamados por anúncios em jornais para listar atividades a um hipotético “artista impossibilitado de criar” ou mesmo dividir a cena com ele.

O “contrato” parece claro, delimita as atividades a 50 linhas, paga R$ 70,00 por cada lista e propõe um roteiro para vir a público no Novelas Curitibanas e contracenar com Clovis Cunha, à guisa de mestre de cerimônia dos anônimos na ribalta, devidamente recolhido na coxia na maior parte do tempo.

Ao contrário da cena elaborada em 2010,
Se Conselho Fosse Bom Seria Ação de Classificados, na qual consistia em consolar o contratante que levou um fora amoroso, material registado em vídeo e integrado depois à narrativa de fundo melodramática, aqui a proposta radica em transferir o máximo possível a mediação com o público para os profissionais que responderam aos anúncios – foram dezenas. O “durante” é feito do que o precedeu: a atitude do coletivo em dar passagem ao desconhecido sob risco de naufragar.

O resultado ao vivo tensiona um roteiro que pode ser subvertido a qualquer momento na representação que não o é no instante em que os “auxiliares de personagem” estão alinhados ou sozinhos sob os refletores, atrás de microfones. Suas vozes e posturas corporais são comuns, transportadas como um documento dos seus cotidianos. Aparentemente, os três homens posicionam-se à vontade. Cada em sua vez toca gaita, exibe fotografias de sua rotina e propaga os benefícios de se plantar um pinheiro (uma araucária típica paranaense?). As marcações de entrar, sair, postar-se sob o luz, enfim, tudo isso eles fazem e demonstram que ensaiaram minimamente.

Em sua terceirização ou paródia de, Compra de Personagem cumpre o enunciado a que se propõe pelo inusitado da ação que convoca artistas e público a mirar o ato criativo de outro lugar.



O terceiro "auxiliar" rememora imagens cotidianas
Foto: Elenize Dezgeniski


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