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Mostrando postagens de outubro, 2012

A experiência do feminino

por Luciana Romagnolli "As Tetas de Tirésias...". Fotos de Lidia Sanae Ueta. Do mito evocado na cena “As Tetas de Tirésias – Jaculatória para Comer um Coração Paternal” emerge a disputa de gêneros centrada na experiência de ser mulher. Na tradição grega, Tirésias é o homem transformado em mulher ao matar uma cobra-fêmea, para então retornar como homem após matar uma macho. Por sua vivência única dos dois gêneros, é incitado pelos deuses a afirmar de qual é a supremacia no gozo. Ao responder que feminina, causa a ira de Hera, que o cega, mas por Zeus é compensado com o dom da profecia. Na criação do grupo Estábulo de Luxo, esse arquétipo transexual ressurge liberto de um enredo trágico, nutrindo o imaginário das figuras representadas pelas duas atrizes – Guaraci Martins e Danielle Campos. O feminino triunfa em seu aspecto agressivo, de uma potência de morte e revolução. Aludindo à Maria Bonita, Danielle carrega a imagem de uma mulher com a brutalidade do canga

Uma atmosfera rarefeita

por Luciana Romagnolli "Os Escafandristas". Fotos de Lidia Sanae Ueta. “Os Escafandristas” teve uma conturbada estreia na 8ª Mostra Cena Breve Curitiba.  A Cia. do Chá enfrentou problemas técnicos perceptíveis, tal qual a entrada de um off quase inaudível, que precisou ser repetida, e outras quebras de ritmo na encenação que sugerem demais contratempos. Além disso, o programa da cena anuncia a existência de um terceiro personagem, ausente na apresentação. Com isso, a assimilação da fábula em torno das condições de vida e dos costumes de dois habitantes do fundo do mar ficou prejudicada. Ainda assim, o grupo mineiro pôde reiterar sua vocação para verter em metáforas as idiossincrasias dos seres humanos, sintetizadas em soluções cênicas simples e sugestivas, como as máscaras de ar cuja sensação provocada é de sufocamento, a narrativa em off à semelhança de um documentário sobre a natureza, e a atmosfera rarefeita em que os tempos da cena se desenvolvem. Ao des

Um corpo em transformação

por Luciana Romagnolli "Makunaíma...". Foto de Lidia Sanae Ueta. Ao trabalhar uma dramaturgia do corpo, um grupo como o franco-brasileiro Dos a Deux molda narrativas nítidas, a exemplo do espetáculo “Saudade em Terras D’Água”, prescindindo de palavras para que a história se desvele aos olhos do público. É um efeito distinto do obtido pela construção corporal do ator Milton Aires na cena “Makunaíma: A Árvore do Mundo e a Grande Enchente”, do Estúdio Reator e Coletivo Miasombra (PA). Sua intenção de recontar as histórias do herói brasileiro se afasta da clareza narrativa em benefício de um jogo de ações, do qual se depreendem algumas das metáforas e situações, mas por vezes a nitidez se borra e o jogo se fecha na relação do ator com o texto, num alheamento do público.  O trabalho minucioso de Milton Aires sobre a gestualidade, os movimentos, reações e tempos de seu corpo sustenta a cena, ancorada em um espaço circular virgem, delimitado pela luz, a ser povoado pela

O deboche da decadência precoce

por Luciana Romagnolli "Nem o Pipoqueiro". Foto de Lidia Sanae Ueta. "Nem o Pipoqueiro", do Coletivo Nu, havia passado pelo Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, antes de chegar à 8ª Mostra Cena Breve Curitiba, e sofreu transformações nesse percurso, em que se prepara para se tornar espetáculo. As três jovens atrizes - Cristina Madeira, Fabiana Brasil e Mariana Teixeira - enfrentam os percalços de início de carreira, forjando a situação de uma apresentação de teatro de revista ou cabaré à qual nenhum espectador comparece. O pessimismo de suas constatações se confronta às expectativas de sucesso e legitimação: o apoio financeiro da Petrobrás, o prêmio Shell, a capa da Bravo!. A ambição que não se encontra entre elas é a de um projeto artístico. Chegam a dizer que, se houvesse público, talvez aí sim tivessem o que dizer, na mais cruel das constatações: a do artista sem arte. Sua ironia recai sobre a fama pela fama - e a plateia emba

Limites do amor romântico

por Luciana Romagnolli "Amores Dissecados". Foto de Lidia Sanae Ueta. Ingrata empreitada a de falar do amor. O tema mais repisado. Provedor dos maiores clichês. Algum frescor - para não dizer originalidade - pode ser encontrado, talvez, no mergulho na experiência singular de indivíduos. Como a atriz Janaína Leite e o ex-marido fazem no documental "Festa de Separação". Sem essa fagulha de verdade ou particularidade, paira-se no marasmo de um imaginário conhecido, que as novelas e os romances literários e cinematográficos exploram à exaustão, jogando com as possibilidades de identificação e comoção do público. Longo prólogo para enfim encontrar a cena "Amores Dissecados", do grupo paulista Teatro No Meio Fio. Dissecar sugere decompor em partes, em geral para compreender, ou, ao menos, conhecer em detalhes. As microhistórias que os atores Carolina Ferraresi e Valmir Martins apresentam, contudo, raramente perfuram a superfície das relações. Tem-se a an

Imagens obscuras

por Luciana Romagnolli "Trauma Cha Cha Cha". Foto de Lidia Sanae Ueta. Icamiabas, ao que se conta, eram mulheres de uma tribo guerreira que não permitia homens nem a aproximação de outras pessoas, exceto uma vez ao ano, quando os guacaris eram recebidos e a eles eram entregues os meninos gerados. Essas índias, amazonas, são evocadas no batismo da cena "Trauma Cha Cha Cha - Carta pras Icamiabas", apresentada pelo Núcleo de Espetacularidades e pela Casa Selvática. Trazem as forças indígenas, obscurantistas, que reverberam nas danças xamânicas e operam à margem do processamento de sentidos próprio à mente racional ocidental, como uma "esfinge" (termo que empresto de Henrique Saidel) que não se decifra. Discípulos das intenções do teatro da crueldade de Artaud, catalisam energias em um nível aparentemente pré-verbal e realizam um balé do trauma em que os abalos sísmicos se deslocam pelos corpos. Ainda como a esfinge, criam um organismo disforme, pagão

A criação de um caos calculado

por Luciana Romagnolli "Loufadas". Foto de Lidia Sanae Ueta. "Loufadas - Três Sopros", da Cia. Pé no Palco, manifesta um impulso filosófico e poetizador de formular sentidos para a vida, obedecendo à insatisfação humana, motivadora de questionamentos existenciais e elaborações artísticas que ultrapassem os usos ordinários do corpo e da língua/pensamento. Os atores Fátima Ortiz e Pedro Bonacin recorrem às palavras de Friedrich Nietzsche sobre a criação e os descaminhos do humano, recitadas enquanto cumprem uma partitura corporal metaforizante que põe em relação os corpos individualizados e os acopla em volumes únicos, traçando linhas de movimento no espaço geometricamente organizado do palco. Pois foi justamente Nietzsche quem propôs as categorias essenciais do apolíneo e do dionisíaco, vinculando a primeira ao racionalismo, à clareza e à medida, e a segunda ao impulsivo e transbordante, como verdades relativas para se pensar ideais estéticos. Nesse panoram

O saber do corpo

por Luciana Romagnolli "Linha Cortante". Foto de Lidia Sanae Ueta. Para a 8ª Mostra Cena Breve, o Coletivo Negro destacou uma cena de seu espetáculo "Movimento Número 1: O Silêncio de Depois", em que três personagens narram seus embates com a cultura branca dominante, cujo ápice do confronto ocorre durante a desapropriação de suas casas para a construção de uma linha de trem. "Linha Cortante", a cena conduzida pelo ator Raphael Garcia e apresentada em Curitiba, propõe desde o título uma metáfora entre a pipa do garoto que cortava livre o ar e a passagem do trem, que cruzará o território rasgando a organização familiar e comunitária e deixando mortos no caminho. O episódio revela desdobramentos das duas diásporas negras - a primeira, causada pelo tráfico de escravos vindos da África; a segunda, uma mobilidade até certo ponto voluntária, após o fim do regime escravocrata. Com a desapropriação narrada, o Coletivo Negro aponta para a dissolução dos laç

Jogo de cena de uma travesti

por Luciana Romagnolli "Trajetória PL". Foto de Lidia Sanae Ueta. Em junho, quando Pedro Silveira apresentou a cena "Trajetória PL" em Belo Horizonte, no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, escrevi o seguinte texto, que considero ainda válido para esta 8ª Mostra Cena Breve: Trajetória ‘PL’ , de Brasília, se apresenta como o relato documental de uma jovem travesti que resolve encenar sua própria história após vê-la narrada em uma montagem teatral por um ator profissional. O jogo de cena se estabelece, confundindo qual seria exatamente a relação do ator que vemos no palco – Pedro Silveira, dirigido por Fernando Villar – com a biografia que conta.   Insinua-se o borramento do limite entre realidade e ficção, reforçado pela fala coloquial e pretensamente espontânea, acompanhada de meticuloso gestual, igualmente calculado para parecer natural. O paradoxo está aí: quanto mais a cena convence como registro documental ou hiperrealista, mais se est

A construção do amor romântico

por Luciana Romagnolli "Como Desaparecer Completamente", do Ateliê Voador Companhia de Teatro (BA), é outra cena que, em seu desenvolvimento, toma um desvio que a distancia dos estímulos iniciais. Os atores Duda Woyda e Lucas Lacerda ocupam um palco nu, onde setas impressas no chão induzem direções. Desdobram um diálogo amoroso permeado de perda e descompasso. A imaginação do espectador é instigada a revestir a crueza dessa encenação, à medida que as falas sugerem imagens - como a de um homem e uma mulher - às quais a materialidade visível não corresponde, num atrito entre a artesania teatral e a ficção. O despossamento da ilusão se acirra por um mecanismo de inversão, que repete a trama com as vozes trocadas, confundindo mais as identidades, despregadas dos indivíduos corporificados. Essa segunda versão do diálogo intesifica os tons românticos, aproximando-se, pelas atuações e pela trilha sonora que invade a cena, de uma linguagem novelesca oposta à crueza inicial. Sob

Comédia redentora

por Luciana Romagnolli "Epílogo - A Vaca Pródiga". Foto de Lidia Sanae Ueta. "Epílogo - A Vaca Pródiga" compõe o espetáculo "A Vaca Pródiga", dirigido por Nina Rosa Sá a partir da obra de Mark Harvey Levine. No entanto, justamente o epílogo ora alçado à condição de cena independente não faz parte dos escritos do norte-americano. É uma criação da atriz Tatiana Blum, que contracena com Pablito Kucarz. Ela como a vaca, ele, o cabrito. Seu texto é uma comédia leve em formato fabular, ancorada na personificação dos bichos e na distinção entre suas percepções de mundo: prestes a morrer, a vaca toma consciência do seu ser-vaca e do estar em cena, despertando um jogo metateatral, enquanto o cabrito permanece alheio. Tatiana conduz a comicidade com uma interpretação amparada em trejeitos e no delineio da sagacidade recém-adquirida pelo mamífero, que oferece um ponto de vista incomum para os hábitos humanos e se permite uma alfinetada no ideario do casal

A desmaterialização do amor

por Luciana Romagnolli "Depois". Foto de Lidia Sanae Ueta. "Depois", do grupo Figurino e Cena, opera um jogo de densidades com os espaços e corpos. A paisagem sonora e a luz sobre o gelo seco avolumam o palco, que em outros trabalhos desta 8ª Mostra Cena Breve tem se revelado em seus vazios. No entanto, o vazio também circunda a figura do homem, o ator Paulo Vinícius, de quem se ouve frases fragmentadas em débil conexão, com frouxos ecos do "Primeiro Amor" de Samuel Beckett. Um discurso amoroso convencido de que inventa o ser amado. O mesmo vazio adensado envolve a mulher, a atriz Airen Wormhoudt, de quem está apartado no espaço e, por vezes, no tempo da encenação. Os corpos que falam suas subjetividades são inertes. A coreografia os move já mudos, num espelhamento de ações que perde, aos poucos, a harmonia, até o desencontro. Os afetos se manifestam num tempo-depois, como anuncia o título, um futuro impotente no qual se instaura o estado de sítio

Atado ao mundo infantil

por Luciana Romagnolli "Esboço para My Adult World". Foto de Lidia Sanae Ueda. "Esboço para My Adult World" constrói a fábula de um solitário, marcada pelo quanto a experiência da infância determina a vida adulta. O personagem desse solo é um homem neutralizado pelos ecos da criança que um dia foi, mas que parece não ter se dissolvido ao passar dos anos. O trânsito para essa "idade em que a lei lhe concede completa capacidade para os atos da vida civil" (para ficar na definição dicionarizada) é penoso na medida em que implica perdas, responsabilidades, carências e desilusões. O ator Alexandre D'Angelli materializa esse estranhamento diante das demandas adultas usando como recurso a animação de um boneco de papel, cujas dimensões reduzidas contrastam com a amplidão do espaço cênica delineado, por mais que este tenha limites estreitos também. A cena se faz de elementos visuais que evocam a infância nos tamanhos, materiais, traços e cores, impondo

O desejo de transgressão

por Luciana Romagnolli "Monstre Julia". Foto de Lidia Sanae Ueta. Como pensar uma criação artística que se concebe como um processo de muitas etapas com base somente no evento de uma cena breve? Por outro lado, como escapar dos limites desse evento, se é a ele apenas que o público tem acesso no momento? É necessária uma cena que se baste, com independência, ou vale a visão de um fragmento deslocado do todo no qual seus sentidos se realizam? São indagações despertadas por "Monstre Julia", do Grupo de Investigação Cênica Heliogabalus. O trabalho nasce das inquietações pessoais de Semy Monastier. E talvez aí esteja, ainda, o limite de seu alcance. No debate desta manhã, a atriz/performer disse que o principal encontro que se dá em cena é seu com Julia, a personagem de August Strindberg para a qual a artista imagina um desfecho sem suicídio e transportado para o mundo contemporâneo. A relação intraficcional entre atriz e personagem, portanto, está delineada, mas

O eu esmagado pelos outros

por Luciana Romagnolli "Reunião de Condomínio". Foto de Lidia Sanae Ueta. Em "Reunião de Condomínio", o pensamento existencialista de Jean-Paul Sartre (1905-1980) guia a Súbita Companhia de Teatro em sua abordagem para o conto de Marina Colasanti sobre um morador que vai à reunião de condôminos fantasiado, e se vê diante do poder paralisante das divergências de opiniões que não entram em acordo. Como terceiro ponto de sustentação, a cena se equilibra na relação entre a presença física da atriz e a virtualidade dos personagens com quem contracena, pré-gravados em vídeo. Com isso, fica estabelecido o confronto do eu com o outro, problematizado na teoria sartreana, transposto para um contexto do cotidiano de classe média e mediado pela diferença de linguagens empregadas em cena. O eu - representado pela atriz Janaina Matter - se apresenta carnal, palpável, presente. Uma mulher cujas inquietações de uma noite de tédio a levam a romper o protocolo da reunião de c

Uma conciliação irônica

por Luciana Romagnolli "Tema de Amor para Curitiba". Foto de Lidia Sanae Ueta. "Tema de Amor para Curitiba" reconhe as várias cidades que há em uma e os vários teatros contidos numa cidade, e opera uma conciliação de parte dessas diferenças. O palco é tomado como esse espaço de comunhão, armado em torno de uma mesa onde se partilha a comida e o vinho, numa imagem que evoca a Última Ceia, de Leonardo Da Vinci, e na qual os apóstolos são figuras icônicas do teatro curitibano, como Fátima Ortiz, Nena Inoue, Regina Vogue e César Almeida, sentados ao lado do Elenco de Ouro, num encontro inesperado de vertentes de pensamento e prática teatral que outrora pareceriam inconciliáveis num palco ou nos bastidores. A força dessa imagem reside na harmonia estabelecida, em contraste com um imaginário de indisposições e boicotes que permearia as relações entre artistas locais, como já foi criticado no espetáculo "Árvores Abatidas", mas também transparece na inarti

Circo contamina noite de abertura

por Luciana Romagnolli  "Cyrk Cortejo". Foto de Lidia Sanae Ueta. O espírito circense conduziu a noite de abertura da 8ª Mostra Cena Breve. Primeiro, com o brevíssimo cortejo de "Cyrk", pelo qual o Trio Quintina e convidados espalharam sua música em frente ao Sesc da Esquina criando uma atmosfera lúdica pelo recurso às máscaras de bichos, perna de pau e a um homem-banda, e preparando a sensibilidade do público para a mostra que se inicia. Como um aperitivo. Dentro do teatro, a Cia. Rústica mostrou outra vertente de seu trabalho, personalizada no ator-palhaço Heinz Limaverde e seu "O Fantástico Circo Teatro de um Homem Só". Ao ser habitado por Limaverde e suas memórias de vida e arte, o palco se transforma em espaço de expressão do eu, que tenta concilar seus fragmentos em uma narrativa coerente, para dar sentido a uma trajetória que parte do interior cearense para a capital gaúcha e que conjuga, mais do que linguagens cênicas distintas, sonhos in

Abertura provoca tremores mínimos na cidade

por Luciana Romagnolli "Desvios Urbanos". Foto de Lidia Sanae Ueta. Curitiba sofre com uma timidez - ou um desinteresse mesmo - em ocupar os espaços públicos. Complexa questão antropológica, de possíveis determinações climáticas, que não nos cabe aqui responder. Mas que esvazia a cena teatral da cidade de produções que se lancem a céu aberto, seja pela linguagem do teatro de rua, da performance ou da intervenção. Quando o Sesc ocupou o Paço da Liberdade, a promessa era de que o calçadão em torno do prédio histórico seria habitado por espetáculos, o que raramente se deu. Tanto quanto, em qualquer outro ponto da cidade, é raro ver o trânsito de pessoas interrompido por uma agitação estética que as derrube, por alguns momentos, do delírio coletivo de um cotidiano padrão. Ao atrair uma intervenção poética justamente para as imediações do Paço da Liberdade, com irradiações pela Rua das Flores, como ato inaugural de sua 8ª edição, a Mostra Cena Breve atesta sua vontade de t