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Abertura provoca tremores mínimos na cidade

por Luciana Romagnolli
"Desvios Urbanos". Foto de Lidia Sanae Ueta.

Curitiba sofre com uma timidez - ou um desinteresse mesmo - em ocupar os espaços públicos. Complexa questão antropológica, de possíveis determinações climáticas, que não nos cabe aqui responder. Mas que esvazia a cena teatral da cidade de produções que se lancem a céu aberto, seja pela linguagem do teatro de rua, da performance ou da intervenção. Quando o Sesc ocupou o Paço da Liberdade, a promessa era de que o calçadão em torno do prédio histórico seria habitado por espetáculos, o que raramente se deu. Tanto quanto, em qualquer outro ponto da cidade, é raro ver o trânsito de pessoas interrompido por uma agitação estética que as derrube, por alguns momentos, do delírio coletivo de um cotidiano padrão.

Ao atrair uma intervenção poética justamente para as imediações do Paço da Liberdade, com irradiações pela Rua das Flores, como ato inaugural de sua 8ª edição, a Mostra Cena Breve atesta sua vontade de tremular a cidade e acordar o passante de seu sonambulismo rotineiro para uma experiência cênica, aproximando o teatro, em seus deslimites, também de uma comunidade ausente dos edifícios teatrais. Esta tem sido, afinal, a vocação da CiaSenhas, organizadora da mostra, desde que instalou sua sede na rua São Francisco.

Vinda de Porto Alegre, a Cia. Rústica adota uma postura de infiltração em "Desvios Urbanos", silenciosamente intervindo na paisagem urbana pelo desfilar de figuras destoantes, que abrem pontos de fuga na malha urbana. Pessoas com cabeças de burro, uma mulher que cai, outra presa a boias, um homem sem rosto cujo coração de balão é estourado, mulheres em vestidos longos, uma delas constantemente desconfortável com a fenda que exibe, um homem que lê... Tais personagens se misturam à confusão de transeuntes, como fissuras que os mais desatentos nem notarão.

São mínimos tremores, acenando para possibilidades de outras vivências, outras rotinas, outros modos de expressão, leitura e ação sobre o mundo, fundados em capacidades poetizantes, metafóricas, representacionais e oníricas que, na vida cotidiana, parecem diluídas. É uma intervenção tímida, como talvez seja esta cidade, a partir da qual germina o desejo de ver outras, muitas - além das sutis, também as dispostas a abalar ruidosamente as estruturas do fluxo urbano e propagar sua força de afetação.



Comentários

Anônimo disse…
Vou fazer um breve comentário concernente apenas à primeira frase do post de Luciana - "Curitiba sofre com uma timidez - ou um desinteresse mesmo - em ocupar os espaços públicos". Certamente não teria como analisar esta afirmação de um ponto de vista das manifestações teatrais, mas posso ao menos acenar com uma percepção - Curitiba vem a alguns anos redescobrindo o espaço público ou, mais acertadamente, transformando em esfera pública certos espaços da cidade. E dá-lhe Carnaval, Garibaldis e Sacis, passeatas das Vadias ou da Diversidade Sexual, "ano novo" na praça da Espanha, Virada Cultural, Bicicletada, ações artísticas. Pode ser pouco para os olhos de algum sociólogo ou antropólogo, mas sinto algo muito positivo aí. Tenho na cabeça ainda o Comício das Diretas Já (o primeiro do Brasil) no calçadão da rua XV. Aquele burburinho, tanto tempo, crises, desafios e transformações depois, parece que tem reverberado por aqui. Abraços de Paulo Reis.
Luciana disse…
É verdade, Paulo, vejo, a distância, esse burburinho acontecer. Mas ainda me parece bastante inicial. Estou vivendo em uma cidade (Belo Horizonte) onde se reclama de não se ocupar mais os espaços públicos, mas essa ocupação já é incomparável com aqui. Quero dizer que há muito ainda a agitar nesta Curitiba.

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