Pular para o conteúdo principal

O saber do corpo

por Luciana Romagnolli
"Linha Cortante". Foto de Lidia Sanae Ueta.

Para a 8ª Mostra Cena Breve, o Coletivo Negro destacou uma cena de seu espetáculo "Movimento Número 1: O Silêncio de Depois", em que três personagens narram seus embates com a cultura branca dominante, cujo ápice do confronto ocorre durante a desapropriação de suas casas para a construção de uma linha de trem. "Linha Cortante", a cena conduzida pelo ator Raphael Garcia e apresentada em Curitiba, propõe desde o título uma metáfora entre a pipa do garoto que cortava livre o ar e a passagem do trem, que cruzará o território rasgando a organização familiar e comunitária e deixando mortos no caminho.

O episódio revela desdobramentos das duas diásporas negras - a primeira, causada pelo tráfico de escravos vindos da África; a segunda, uma mobilidade até certo ponto voluntária, após o fim do regime escravocrata. Com a desapropriação narrada, o Coletivo Negro aponta para a dissolução dos laços de pertencimento imposta ao povo negro, seja em relação à terra ou aos antepassados. O que morre, com a avó do garoto, é parte de um saber transmitido não pela escrita, mas pelo corpo (a oralidade, a dança, o movimento, a música, a pintura etc).

Um saber vinculado à performance, que a atriz Thais Dias faz reconhecer com sua presença, intensificada nos olhares penetrantes, na caracterização e na expressão corporal. Ela personifica a ancestralidade africana associada às forças da natureza (e é emblemático que sejam suas mãos o vento a tremular a pipa). Cria-se, assim, o contraste entre sua figura e a de Raphael Garcia, cuja fala e gestualidade carregam uma concepção já "abrasileirada" de corpo e cultura, mas cujo destino é afetado pelas diferenças raciais dentro do país.

O posicionamento crítico do grupo paulistano se manifesta discursivamente nas memórias narradas pelo personagem do menino quando adulto, num sobrepor de tempos que atesta o fim da inocência, mas se alastra sobretudo pelas imagens, gestualidades, objetos, músicas e ruídos, que estabelecem a teatralidade. A afetação produzida pelo Coletivo Negro se quer intimista, um a um, por contatos visuais em busca de identificação, vínculo, atravessamento. Por isso, seu público ideal está sentado ao redor, muito próximo, e é sensorialmente afligido pela presença dos atores e músicos. Na Mostra Cena Breve, o teatro de palco italiano, frontal, impediu essa configuração do espaço, apenas parcialmente solucionada com assentos improvisados para uma mínima parcela dos espectadores formarem o círculo dentro do qual a cena é performada.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Zona erógena e cócegas

Cena  parte de texto de catalão e é dirigida por André Carreira }  Elenize Dezgeniski Em “Romeu e Julieta”, o frei Lourenço afirma que “Esses prazeres violentos têm finais violentos/ E, em seu triunfo, morrem como o fogo e a pólvora./ Que se consomem quando se beijam”. Para além do fundo histórico e social da tragédia, a impossibilidade da consumação do amor juvenil em Shakespeare talvez nos diga mais sobre a sabotagem dos desejos na contemporaneidade. Um prolongado beijo entre personagens que se dizem irmãos, ele e ela, é um dos múltiplos ruídos propositalmente desestabilizadores em “La Belle Merde”, do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis. A objetividade científica da forma expositiva vem associada à apresentação de seminário ou conferência que aparenta se passar em sala de convenção ou sala de aula, ainda que sugira a neutralidade de um ambiente com uma cadeira e uma mesa discretas, além da luz invariável. Os atores Lara Matos, Lucas Heymanns e Mar...

Ronca o rancor

Princesa Ricardo (Marinelli) critica e escarnece da onda reacionária  }  Elenize Dezgeniski Provérbios, chavões, lugares-comuns, tanto faz, eles abundam na figura da Princesa Ricardo em “Das Tripas Coração”, arremedo de ópera-bufa em que o performer Ricardo Marinelli captura pela unha a narrativa reacionária que o Brasil nunca viu tão descarada. E dela escarnece apoiada nos vícios de linguagem. Funciona muito bem a analogia dos excessos diante da realidade transbordante, da virulência com que as vozes conservadoras perderam os pudores na desqualificação do diferente. A cena desossa o senso comum e abre outras portas para mostrar que os significados (das coisas, das vidas, das palavras) sofrem um desgaste sem precedentes no atual quadro sociopolítico. Texto-depoimento e ações podem soar literais ou desarmônicas, permitindo ao espectador um exercício permanente de verificar os anacronismos entre fala e expressão corporal que chamam ao pensamento crítico. Para essa figura...

A camiseta que habito

Clarissa Oliveira em 'Que Bom Que Você Entendeu...'  }  Elenize Dezgeniski A Companhia Transitória encampa um depoimento antiviolência contra a mulher em “Que Bom Que Você Entendeu Que Estou Tão Perdida Quanto Você”. Proposição tudo a ver com as letras de uma banda californiana que marcou a década de 1990 com pegadas punk e grunge, o Hole, influência confessa da diretora e dramaturga Nina Rosa Sá e cujas canções, em geral, versam sobre os malefícios da sociedade patriarcal, permissiva ao assédio, às agressões física e psicológica, à cultura do estupro. Questões de identidade, de sexualidade e de imagem corporal que aparecem, por exemplo, na letra de “Celebrity Skin” (pele de celebridade, 1998), interpretada pela vocalista e guitarrista Courtney Love. Há uma atitude independente e indignada na disposição e nas falas das atrizes Ludmila Nascarella, Clarissa Oliveira e Ana Larousse. Seus discursos afirmativos são unívocos (efeito colateral do tom monocórdio das voze...