Princesa Ricardo (Marinelli) critica e escarnece da onda reacionária } Elenize Dezgeniski |
Provérbios, chavões, lugares-comuns, tanto faz, eles abundam na figura da Princesa Ricardo em “Das Tripas Coração”, arremedo de ópera-bufa em que o performer Ricardo Marinelli captura pela unha a narrativa reacionária que o Brasil nunca viu tão descarada. E dela escarnece apoiada nos vícios de linguagem. Funciona muito bem a analogia dos excessos diante da realidade transbordante, da virulência com que as vozes conservadoras perderam os pudores na desqualificação do diferente. A cena desossa o senso comum e abre outras portas para mostrar que os significados (das coisas, das vidas, das palavras) sofrem um desgaste sem precedentes no atual quadro sociopolítico. Texto-depoimento e ações podem soar literais ou desarmônicas, permitindo ao espectador um exercício permanente de verificar os anacronismos entre fala e expressão corporal que chamam ao pensamento crítico. Para essa figura atabalhoada, de peruca e salto-alto, que carrega no rímel e na bijuteria, vestida de tonalidades verde-amarela, mas que se quer “discreta”, “cidadão de bem”, discurso e atitude entram em atrito e vão patenteando o ranço nos espaços do concreto e do imaginário. A brincadeira com a peteca que não cai (enquanto a língua atira para os lados mais progressistas), o murro simulado na ponta da faca, as linguiças que representam as tripas do título, esses clichês dão a medida da reprodutibilidade de ideias e prejulgamentos fundados estritamente na capacidade de odiar o ponto de vista e a crença dos opostos. Pós-verdades, fatos relativos, o desequilíbrio se dá por aí. Em sua virilidade implícita, sua feminilidade explícita e o destilar do veneno escorrendo no canto da boca, a Princesa Ricardo despacha os dejetos verbais e sofre com as colorias que não perde. Por meio dela, Marinelli purga a arte em sua capacidade de chafurdar na lama, pactuar as dores do mundo – porque estamos diante de uma tristeza infinita nesse trabalho – e atravessar até a outra margem do rio transformado pelo poder incólume de performar. (Valmir Santos)
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"Das Tripas Coração" destila veneno sobre as contradições do país } Elenize Dezgeniski |
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