Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de maio, 2017

Ronca o rancor

Princesa Ricardo (Marinelli) critica e escarnece da onda reacionária  }  Elenize Dezgeniski Provérbios, chavões, lugares-comuns, tanto faz, eles abundam na figura da Princesa Ricardo em “Das Tripas Coração”, arremedo de ópera-bufa em que o performer Ricardo Marinelli captura pela unha a narrativa reacionária que o Brasil nunca viu tão descarada. E dela escarnece apoiada nos vícios de linguagem. Funciona muito bem a analogia dos excessos diante da realidade transbordante, da virulência com que as vozes conservadoras perderam os pudores na desqualificação do diferente. A cena desossa o senso comum e abre outras portas para mostrar que os significados (das coisas, das vidas, das palavras) sofrem um desgaste sem precedentes no atual quadro sociopolítico. Texto-depoimento e ações podem soar literais ou desarmônicas, permitindo ao espectador um exercício permanente de verificar os anacronismos entre fala e expressão corporal que chamam ao pensamento crítico. Para essa figura atabalho

Zona erógena e cócegas

Cena  parte de texto de catalão e é dirigida por André Carreira }  Elenize Dezgeniski Em “Romeu e Julieta”, o frei Lourenço afirma que “Esses prazeres violentos têm finais violentos/ E, em seu triunfo, morrem como o fogo e a pólvora./ Que se consomem quando se beijam”. Para além do fundo histórico e social da tragédia, a impossibilidade da consumação do amor juvenil em Shakespeare talvez nos diga mais sobre a sabotagem dos desejos na contemporaneidade. Um prolongado beijo entre personagens que se dizem irmãos, ele e ela, é um dos múltiplos ruídos propositalmente desestabilizadores em “La Belle Merde”, do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis. A objetividade científica da forma expositiva vem associada à apresentação de seminário ou conferência que aparenta se passar em sala de convenção ou sala de aula, ainda que sugira a neutralidade de um ambiente com uma cadeira e uma mesa discretas, além da luz invariável. Os atores Lara Matos, Lucas Heymanns e Marco Antoni

Concha acústica

Ao fundo, Luana Raiter puxa o fio da meada da cena  }  Elenize Dezgeniski A estudante Alice, de 11 anos, sempre viu a arte da performance (e por extensão, das coirmãs dança e teatro) sob intempéries. O vento, o sol, a garoa e até possivelmente as nuvens já influenciaram sua maneira de relacionar-se com os artifícios da cena que os pais, a performer Luana Raiter e o diretor Pedro Bennaton, plantam em seus trabalhos criativos desde que ela se conhece por gente, quer na cidade aonde vive, Florianópolis, quer em circulação. “Essa fumaça é normal”, perguntou Alice na noite anterior, diante da propagação de gelo seco vindo do fundo do palco, sentada ao lado do jornalista na plateia do Teatro Zé Maria Santos. O lugar a partir de onde se vê, na perspectiva da definição milenar – eis o lugar recém-descoberto pela filha dos também dramaturgos do ERRO Grupo. Ele tem quatro anos a mais, 16, em relação à primogênita que esbanja curiosidade e inteligência imersa nos admiráveis mundos novos que

A camiseta que habito

Clarissa Oliveira em 'Que Bom Que Você Entendeu...'  }  Elenize Dezgeniski A Companhia Transitória encampa um depoimento antiviolência contra a mulher em “Que Bom Que Você Entendeu Que Estou Tão Perdida Quanto Você”. Proposição tudo a ver com as letras de uma banda californiana que marcou a década de 1990 com pegadas punk e grunge, o Hole, influência confessa da diretora e dramaturga Nina Rosa Sá e cujas canções, em geral, versam sobre os malefícios da sociedade patriarcal, permissiva ao assédio, às agressões física e psicológica, à cultura do estupro. Questões de identidade, de sexualidade e de imagem corporal que aparecem, por exemplo, na letra de “Celebrity Skin” (pele de celebridade, 1998), interpretada pela vocalista e guitarrista Courtney Love. Há uma atitude independente e indignada na disposição e nas falas das atrizes Ludmila Nascarella, Clarissa Oliveira e Ana Larousse. Seus discursos afirmativos são unívocos (efeito colateral do tom monocórdio das vozes

Desencanto vital

Nolasco, Melina e Machado estão entre os 'Outros Sobreviventes'  }  Elenize Dezgeniski Nem a fascinação nem a resignação. “Essa é a nossa linguagem!”, alguém avisa. O caminho do meio expandido e forrado de aptidões possíveis. A ação cênica “Outros Sobreviventes”, do Coletivo Mamulengos de Mameluri, mergulha no vale dos vácuos desencantados e de lá processa a capacidade de resiliência em produzir transformação, moto-contínuo de quem lida com arte. Há um pendor cumulativo na capacidade gregária de atrair trabalhadores cênicos de outros grupos de Curitiba e fazer do palco o seu terreno baldio a ser ocupado por/de figuras estranhas, objetos de filiações as mais diversas (livros, sofás, galões, figurinos soltos, etc.). Não deixa de ser uma demarcação para libertar-se daquilo que te prende: o teatro. Sobretudo seu desenho físico gerador de expectativas amortecidas, ou assim alimentadas pela maioria conformista daqueles que o habitam provisoriamente, independente da natureza arqu

Sem pena

O performer Zé Reis na provocadora cena 'Pós-Frango'  }  Elenize Dezgeniski A objetificação da mulher é tão brutal na sociedade machista que quando ocorre o inverso – o corpo masculino tratado como carne na vitrine –, poucos se dão conta. A performance Pós-frango faz uma articulação estética e filosoficamente bem urdida dessa espécie de contradição. O ator e dançarino Zé Reis, da companhia brasiliense Errante, perpassa imagens figurativas e disruptivas. Pelado, ele alude a estereótipos e convenções a partir de um corpo escultórico, evidenciando músculos que servem ao gogo boy ou ao fisiculturismo. E à arte, claro. Como as aparências enganam, mas, enfim, aparecem – já dizia Leminski –, os desfazimentos dessa plasticidade fútil por volumes e relevos outros tornam as suspensões poeticamente forjadas nesse mesmo corpo sobreposições maleáveis e sofisticadas desse mesmo material capturado do registro grosso da paisagem urbana. Estendido de uma ponta à outra na dianteira do palc

Desterrada

Olga Nenevê no solo ' Passio – 15’ Antes' }  Elenize Dezgeniski Numa tradução da antologia japonesa de escritos zen budista Zenrin-kushū , do século XVII, o poeta Haroldo de Campo erige, no espaço da página em branco, duas linhas paralelas e verticais nas quais se lê, em minúsculas: “a onda revela a essência da lua”; “a árvore desvela a substância do vento”. Pausa: pede-se reler com vagar. Essas imagens brotam da experiência de “Passio – 15’ Antes”, solo de Olga Nenevê, do Grupo Obragem de Teatro. O corpo nu de movimentos e ações enraizadas, maquiado com o pó da terra, dança coesão e ruptura no espaço vazio. É nesse oco que o elo ritualidade-ancestralidade confere equilíbrio ao vergar a coluna e ascender mãos aos céus, sob as injunções dos ossos, das posturas e da cosmovisão da artista. “É pessoal sim”, ela grita. “Sempre é pessoal”. A contagem regressiva para a experiência morte está na base da narrativa curta de paisagem sonora dolente, trilha composta por Edith Camargo.

Liquefeitos

Marcel Szyman e  Janaína Matter em 'A Pequena Sereia'  }  Elenize Dezgeniski A julgar pelo que se experimenta em “A Pequena Sereia”, a transposição de fábulas para a cena contemporânea é uma tarefa que a Setra Companhia de Teatro se dá com o devido senso de complexidade dessa operação. Não se vai ao conto de Andersen, de 1837, para fazer tábula rasa. Menos ainda quando a voga do sereismo, seja lá o que isso for, vira praga disseminada pela teledramaturgia que consegue embalar até a cauda dessa figura para vender. Dois movimentos conformam essa narrativa desconstruída para discutir questão de gênero, pelo menos a camada mais evidente. No primeiro, Janaína Matter e Marcel Szymanski compõem dueto para voz única, a da personagem-título. O olhar longo e circunspecto do ator rastreia a plateia de um ponto a outro, antes de soltar: “Eu sou a Pequena Sereia”. Ele senta e conta sobre o quanto desejava emergir à superfície e, quando assim o fez, encontrou um homem a quem salvou de

Integridade

As Bacurinhas em 'Calor na Bacurinha', de Belo Horizonte }  Elenize Dezgeniski “ Calor na Bacurinha ” apropria-se rigorosamente da nudez como dispositivo crítico. Afronta principalmente o tabu da genitália feminina disseminado por fundamentalismos religiosos e políticos ao longo da história. A experiência artística do autointitulado bando As Bacurinhas, de Belo Horizonte, se aproxima de uma guerrilha poética. A atitude desse coro de atrizes faria vibrar o autor do quadro "A Origem do Mundo", do pintor francês Gustave Courbet (1819-1877). É como se a figura feminina que tem retratados em primeiro plano o tronco, o órgão sexual e parte das coxas saltasse ao palco e interagisse com a plateia pelos corredores. O jogo de contravenção encarnada debocha por meio do gesto, do movimento e do discurso afiado. Contra-narrativas. As alusões chulas à vagina são respondidas com a mesma moeda de impropérios relativos ao pênis. A hegemônica pegada falocêntrica na espetacularizaç

Ação de despejo

Juliane Souto em 'Pour Poor Andy' }  Elenize Dezgeniski No mundo vasto mundo da cena curta, dificilmente uma criação imprime um percurso que possa se inferir com começo, meio e fim. A elaboração dramática em “Pour Poor Andy” , do Grupo P.U.T.O., assume unidades temporais e espaciais e, dentro delas, comete deslocamentos de percepção que enriquecem o imaginário em torno da mulher que faz da sua casa e do seu corpo não-lugares. Ela admite o quanto é ruim não se reconhecer em seu próprio corpo, equivalente à atitude de trancar-se no banheiro em plena festa que acontece em sua casa. É um achado a síntese construída em torno do ser associal, capaz de incomodar-se com o ruído da própria presença. A excelência técnica da intérprete Juliane Souto, também ela dramaturga, cria um colchão de gênero musical na dobradinha de voz e teclado com o músico Álvaro Antonio. Um colchão rítmico, em todos os sentidos, para deitar a solidão e a clausura da personagem. O jazz se traduz nas parti

Ganas

Espectadores ativos em 'Irrefreável' }  Elenize Dezgeniski Os protestos de junho de 2013 também despertaram o gigante da hibernação ágrafa. Um mar de reivindicações escritas em papeis sulfite e cartolina como que individualizaram a maneira de veicular as reivindicações que, ao cabo, dizem respeito à massa e cravam indignidade. Renata de Roel e Fernando Proença extraem desse ato público (de colocar a boca no trombone em letras garrafais ou cursivas) a sua dimensão íntima. “Irrefreável” faz da plateia o lugar inverso da representação. Cria um ambiente de afeto, antiespetacular. Os cartazes e as faixas que o ator e a bailarina trazem aos poucos para a beira do palco somam-se a outros papeis em branco nos quais o público é convidado a se expressar a bel-prazer. Canetas hidrográficas, corações recortados e o exercício de encontrar a melhor posição para escrever no chão e depois pendurar sua “arte” na cortina da sala deram – àqueles que se dispõem e àqueles que contemplam – uma

Coação

Leonarda Glück é Loretta Strong }  Elenize Dezgeniski Assim como o plástico bolha permite múltiplos formatos para proteger ou isolar, o imaginário de Copi corre solto e célere em seus escritos ou cartuns. “Loretta Strong” (1974) é exemplar dessa dramaturgia transgressora nas ideias e nas escolhas estéticas, grávida de entradas e saídas. Quando a atriz Leonarda Glück pisa as bolhinhas de ar prensadas que desprendem do figurino, vão ao chão e enroscam em seu bota, ela materializa os estalos gerados em nossa recepção. O texto é ponto de partida para a cena “Betelgeuse”, mesmo nome da estrela mais brilhantes da constelação de Órion, um dos refugos da cosmonauta Loretta. A figura está acuada diante da invasão de sua nave espacial, cujo oxigênio foi cortado. A falta de conexão com a Terra a deixa ainda mais desesperada. O planeta também foi pelos ares. Esse tom apocalíptico é apenas a ponta do iceberg. Ratos, morcegos, geladeiras e barras de ouro podem penetrar a vagina da protagonis