Pular para o conteúdo principal

Integridade

As Bacurinhas em 'Calor na Bacurinha', de Belo Horizonte } Elenize Dezgeniski

Calor na Bacurinha” apropria-se rigorosamente da nudez como dispositivo crítico. Afronta principalmente o tabu da genitália feminina disseminado por fundamentalismos religiosos e políticos ao longo da história. A experiência artística do autointitulado bando As Bacurinhas, de Belo Horizonte, se aproxima de uma guerrilha poética. A atitude desse coro de atrizes faria vibrar o autor do quadro "A Origem do Mundo", do pintor francês Gustave Courbet (1819-1877). É como se a figura feminina que tem retratados em primeiro plano o tronco, o órgão sexual e parte das coxas saltasse ao palco e interagisse com a plateia pelos corredores. O jogo de contravenção encarnada debocha por meio do gesto, do movimento e do discurso afiado. Contra-narrativas. As alusões chulas à vagina são respondidas com a mesma moeda de impropérios relativos ao pênis. A hegemônica pegada falocêntrica na espetacularização do funk também é cutucada sem juízo de valor sobre o ritmo e sua cultura. Por outro lado, paralelismos com parceiras de ativismo como o grupo performativo estadunidense Guerrilla Girls (usa máscaras de gorila para em ataque ao machismo), a banda russa de punk rock Pussy Riot (improvisou um show numa igreja e atraiu a ira de Vladimir Putin e a simpatia do mundo) e a Marcha das Vadias (deflagrada em 2011 no Canadá e replicada em outros países após uma autoridade policial alegar que vítimas de violência eram “culpadas” por vestirem-se como “vagabundas”). Com a força impetuosa de quem conhece a realidade social do Brasil e seu cotidiano de assassinatos e abusos, as atrizes equilibram um roteiro que põe os pingos nos “is”. Não toleram hipocrisia e dissimulação. E, a despeito do estado manifesto da cena dirigida por Marina Vianna, assumem o caráter dionisíaco de festa sem derreter sua potência. Carnavalização, vírgula. O radicalismo está na magnitude desses corpos políticos livres das normas de gênero, fora da moda. Íntegros. São elxs: Ana Cecília, Ana Reis, Anais Della Croce, Fernanda Rodrigues, Idylla Silmarovi, Ju Abreu, Manu Pessoa, Michelle Sá e Rafael Lucas Bacelar. (Valmir Santos)


Atriz do bando que afronta estereótipos em contra-narrativa } Elenize Dezgeniski

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Zona erógena e cócegas

Cena  parte de texto de catalão e é dirigida por André Carreira }  Elenize Dezgeniski Em “Romeu e Julieta”, o frei Lourenço afirma que “Esses prazeres violentos têm finais violentos/ E, em seu triunfo, morrem como o fogo e a pólvora./ Que se consomem quando se beijam”. Para além do fundo histórico e social da tragédia, a impossibilidade da consumação do amor juvenil em Shakespeare talvez nos diga mais sobre a sabotagem dos desejos na contemporaneidade. Um prolongado beijo entre personagens que se dizem irmãos, ele e ela, é um dos múltiplos ruídos propositalmente desestabilizadores em “La Belle Merde”, do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis. A objetividade científica da forma expositiva vem associada à apresentação de seminário ou conferência que aparenta se passar em sala de convenção ou sala de aula, ainda que sugira a neutralidade de um ambiente com uma cadeira e uma mesa discretas, além da luz invariável. Os atores Lara Matos, Lucas Heymanns e Mar...

Pecinhas para uma tecnologia do afeto – o teste – Teatro de ruído

O grupo Teatro de Ruído apresentou sete pequenas cenas espalhadas pelo espaço do Teatro da Caixa, todas em fase de experimentação – e por isso o subtítulo “em teste”. O espectador fica livre para escolher se assiste a uma cena ou se tenta transitar pelo espaço, para assistir pequenos trechos de duas ou mais cenas. Quem não conhece o grupo fica sem ter nenhum critério pra fazer uma escolha, sem nenhum norte que dê uma sugestão de por onde começar. Muitas pessoas, como eu, acabaram não vendo praticamente nada. Outras, que acompanharam alguma cena do início até o fim, ficaram sem perceber o que as cenas poderiam ter de comum, salvo pelos rastros dos dispositivos cênicos espalhados pelo espaço. Mesmo assim, foi possível perceber uma preocupação do grupo com a visualidade das cenas como partes de um todo, o que se expressava por um tratamento comum nos figurinos: os mesmos materiais, cores e texturas. Por outro lado, não havia uma preocupação com a visibilidade das cenas. É como se o públic...

Ronca o rancor

Princesa Ricardo (Marinelli) critica e escarnece da onda reacionária  }  Elenize Dezgeniski Provérbios, chavões, lugares-comuns, tanto faz, eles abundam na figura da Princesa Ricardo em “Das Tripas Coração”, arremedo de ópera-bufa em que o performer Ricardo Marinelli captura pela unha a narrativa reacionária que o Brasil nunca viu tão descarada. E dela escarnece apoiada nos vícios de linguagem. Funciona muito bem a analogia dos excessos diante da realidade transbordante, da virulência com que as vozes conservadoras perderam os pudores na desqualificação do diferente. A cena desossa o senso comum e abre outras portas para mostrar que os significados (das coisas, das vidas, das palavras) sofrem um desgaste sem precedentes no atual quadro sociopolítico. Texto-depoimento e ações podem soar literais ou desarmônicas, permitindo ao espectador um exercício permanente de verificar os anacronismos entre fala e expressão corporal que chamam ao pensamento crítico. Para essa figura...