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Coação

Leonarda Glück é Loretta Strong } Elenize Dezgeniski

Assim como o plástico bolha permite múltiplos formatos para proteger ou isolar, o imaginário de Copi corre solto e célere em seus escritos ou cartuns. “Loretta Strong” (1974) é exemplar dessa dramaturgia transgressora nas ideias e nas escolhas estéticas, grávida de entradas e saídas. Quando a atriz Leonarda Glück pisa as bolhinhas de ar prensadas que desprendem do figurino, vão ao chão e enroscam em seu bota, ela materializa os estalos gerados em nossa recepção. O texto é ponto de partida para a cena “Betelgeuse”, mesmo nome da estrela mais brilhantes da constelação de Órion, um dos refugos da cosmonauta Loretta. A figura está acuada diante da invasão de sua nave espacial, cujo oxigênio foi cortado. A falta de conexão com a Terra a deixa ainda mais desesperada. O planeta também foi pelos ares. Esse tom apocalíptico é apenas a ponta do iceberg. Ratos, morcegos, geladeiras e barras de ouro podem penetrar a vagina da protagonista sob repulsa, “refecundar” os monstros da direta moral, filhote do reacionarismo econômico que consumiram os terráqueos. A ficção, mais uma vez, desassombra. Essas variações da ordem do absurdo são performadas com placidez, excentricidade e método por Leonarda, dirigida por Gabriel Machado. Ela flutua desenvolta o jorro de situações, fala aos universos paralelos enquanto controla o próprio a todo custo. A cabeleira prateada, a paródia de show de auditório (à la Xuxa) ou de número musical, a reverência com que é tratada pelos patners de smoking e o assédio da imprensa sensacionalista são algumas das lâminas desse painel hilariante. O excessivo tratamento espetacular – como se em busca da imagem totalizante que já borbulha na narrativa em poliedro de Copi – não macula o furor da comicidade e timing da atriz. E nesta criação da Selvática Ações Artísticas reverberam, subjacentes, as sequelas do isolamento e do medo. A coação é uma velha conhecida do continente latino-americano e está na desordem dos dias brasileiros. (Valmir Santos)


A ficção desassombra na cena que saúda Copi } Elenize Dezgeniski

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