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Ação de despejo

Juliane Souto em 'Pour Poor Andy' } Elenize Dezgeniski

No mundo vasto mundo da cena curta, dificilmente uma criação imprime um percurso que possa se inferir com começo, meio e fim. A elaboração dramática em “Pour Poor Andy”, do Grupo P.U.T.O., assume unidades temporais e espaciais e, dentro delas, comete deslocamentos de percepção que enriquecem o imaginário em torno da mulher que faz da sua casa e do seu corpo não-lugares. Ela admite o quanto é ruim não se reconhecer em seu próprio corpo, equivalente à atitude de trancar-se no banheiro em plena festa que acontece em sua casa. É um achado a síntese construída em torno do ser associal, capaz de incomodar-se com o ruído da própria presença. A excelência técnica da intérprete Juliane Souto, também ela dramaturga, cria um colchão de gênero musical na dobradinha de voz e teclado com o músico Álvaro Antonio. Um colchão rítmico, em todos os sentidos, para deitar a solidão e a clausura da personagem. O jazz se traduz nas partituras físicas e nos desenhos de luz e da cenografia. Nem a delimitação do banheiro diminuto e da privada derrapa na deselegância: esconderijo para o inconsciente soltar suas garras. O bichinho de brinquedo a tiracolo é a melhor companhia da mulher para enfrentar os monstros existenciais, artificiais. A beleza de cantar e dançar dentro do vestido cintilante dilui paulatinamente com o embotamento da alma. Certa aura de Prince pouco solar. Nem o espumante alivia a onda. Tampouco morre a beleza da curva dramática desse monólogo interior dirigido por Ali Freyer e tão cirúrgico na exposição de algumas das feridas contemporâneas. (Valmir Santos)

Álvaro Antonio contracena com a dramaturga e atriz } Elenize Dezgeniski

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