Três seqüências de Los juegos provechosos – incríveis réplicas de dinossauros robotizados em tamanho natural, projeto da Companhia Silenciosa, de Curitiba
Assídua no histórico dos quatro anos desta Mostra, a Companhia Silenciosa cometeu uma “cena” das mais inquietantes. Los juegos provechosos – incríveis réplicas de dinossauros robotizados em tamanho natural, o título de implicações épicas risíveis desde largada, é um trabalho que veio para embaralhar as certezas e incertezas do lugar do teatro, do ator, do público, do cidadania (porque na dimensão da pólis) e da ética coligada a uma estética. Tudo coerente com os rumores dos projetos provocados desde que foi fundada em Curitiba, em 2002 - e dos quais acompanhei alguns, como Parasitas e Jesus vem de Hannover.
Desconhecia essa disposição no currículo do grupo para intervir em espaços públicos ao ar livre e a bel-prazer do “acaso”, essa instância rara de deparar em estado bruto, já que os dias de hoje são dados às armações. E o teatro, como arte da mentira (também, mas em contrapartida à verdade), vai por esses flancos com mais jogo de cintura.
Los juegos provechosos mantém o pacto de que não estamos diante de uma história. A Silenciosa fala por meio de outras bordas. Desconstrói com ferramentas da arte performática, do manifesto, da não-representação e do apreço pelas inversões de expectativa, de dramaturgia revirada do avesso. Um dos traços desse “mix” é a irreverência.
Todos os artistas oxigenaram o cabelo. No hall do teatro, onde tudo começa para depois ganhar a rua, arma-se a roda apinhada para entrever um sujeito, justamente o encenador Henrique Saidel fazendo as vezes de ator, metido em camiseta e cuecas vermelhas, a inflar bonecos com ares do pulmão ou artificiais. Contam-se três dinossaurinhos de plástico e um "homem de látex", desses de sex shop. Há ainda dois cavalinhos a girar em torno de si, movidos a pilha.
Todos os artistas oxigenaram o cabelo. No hall do teatro, onde tudo começa para depois ganhar a rua, arma-se a roda apinhada para entrever um sujeito, justamente o encenador Henrique Saidel fazendo as vezes de ator, metido em camiseta e cuecas vermelhas, a inflar bonecos com ares do pulmão ou artificiais. Contam-se três dinossaurinhos de plástico e um "homem de látex", desses de sex shop. Há ainda dois cavalinhos a girar em torno de si, movidos a pilha.
Esse carrossel desatina ao introduzir no círculo a figura do locutor comercial, um profissional das ruas curitibanas escalado para ler um texto árido em conceitos sobre a urbe, arquitetura e afins, no que deu para ouvir e entender. O locutor, voz empostada e nervosa, ornado em sua berrante roupa amarela, chama a atenção não pelo conteúdo, mas pelos tropeços na leitura, a dicção, a ignorância dos termos em inglês, e logo ele vira mote de piada, e não esta conseqüência em si da contracenação com o tipo espantoso que orquestra a brincadeira.
Soube-se depois, a companhia contratou o locutor, deu a ele uma ligeira explicação do que era a proposta, e o profissional topou. Quando se conjugou cidadania, estética e ética linhas acima, foi para jogar luz sobre essa opção. O nível de apropriação de uma pessoa cooptada fora do universo do teatro parece conspirar contra o caráter libertário que Los juegos provechosos prenuncia.
Para fazer um paralelo, o cineasta Eduardo Coutinho é referência no zelo para com seus personagens nos documentários, sem catapultá-los da realidade para distorcê-los, porque aí já não seria mais documento. Do jeito que tratou o locutor, a Silenciosa quebrou o “contrato” com seu público que não foi informado da “participação especial”, de que ele recebeu cachê para isso. Se o fizesse, talvez o riso ganhasse outra tonalidade.
A ação continuou na calçada da Caixa Cultural, quando estaciona um carro vermelho e deles saltam duas loiras, obviamente oxigenadas, pelas atrizes Giorgia Conceição e Marina Nucci. Elas ligam o som, abrem as portas, ensaboam a lataria com seus corpos voluptuosos, esguicham a mangueira entre si e no objeto do desejo, causando euforia em parte dos pedestres-espectadores que preenche as escadarias do teatro, a calçada e uma faixa do asfalto, todos fixados no lava-rápido improvisado (o fetiche combinava com aquela noite de sábado em que a mídia nacional veiculou à beça o encerramento de mais um Salão do Automóvel na capital paulista, onde o atropelamento de cuca tem trânsito livre).
O terceiro e último segmento precipita do alto da fachada de um prédio histórico do outro lado da rua, a Capela Santa Maria. Uma terceira atriz, Léo Glück, encarna a Mulher Maravilha (para completar o time de heróis saudados na Mostra) e desce pendurada em cabo-de-aço. Sob a mira de um canhão de luz, ela traz a reboque outro boneco inflável. Em certa passagem, o objeto de plástico cai sobre os fios de alta tensão, para surpresa inclusive dos protagonistas, aliviados por não ter ocorrido nenhum incidente. Quando alcança o chão, a Mulher Maravilha corre para o carro vermelho, onde as duas outras loiras já estavam embarcadas e o veículo sai em disparada.
O ato transcorreu assim, com sobressaltos que a própria Silenciosa não poderia dominar, sob risco de conspirar contra a concepção a que se atreveu, e o deslize em não cuidar da incorporação no mínimo artificiosa de um estranho no ninho. Dentro do caráter efêmero das artes cênicas, Los juegos provechosos verte especificidades que o tornam ainda mais único. Não se sai indiferente ao partilhar esse experimento que provavelmente não será mais visto ao vivo, ratificando a potência desse núcleo para eternizar alguns minutos da vida, real ou inventada, um limite tênue.
Comentários
Agradecidamente,
Léo Glück,
Companhia Silenciosa 2008.
compreendo o ponto de vista. talvez o locutor fosse, afinal, a principal voz a ser ouvida.
a performance transcendeu a essa passagem.
nosso abraço!