Pular para o conteúdo principal

Mistura e manda


fotos: Elenize Desgeniski
Cena de Aranha marron não usa Roberto Carlos, com ACruel Cia. de Teatro, de Curitiba


As colagens com imagens projetadas ao fundo em diálogo com o texto que tem as manhas de antagonizar “maçaroca” e “muriçoca” sem perder a elegância remeteram de chofre à escrita icônica de Valêncio Xavier no seu excepcional Mez da grippe, dos anos 80, livro que inclusive ganhou versão para o palco em julho passado, no Novelas Curitibanas, pela Pausa Companhia e direção do convidado Moacir Chaves, do Rio.

Deixou boa impressão, para não perder o trocadilho, a participação da recém-nascida e curitibana ACRUEL Companhia de Teatro com a cena Aranha marrom não usa Roberto Carlos. As atrizes-criadoras Emanuelle Sotoski, Lígia Oliveira e Rubia Romani poderiam sucumbir à muleta da projeção de imagem. A sinopse até sugere uma poluição visual com o bombardeio de informações na ordem do dia, mas a grata surpresa é que o trabalho transcendeu à própria teia que vem tecendo.

“As palavras começa a me faltar. Precisamos nos comunicar por pensamentos. Me ouçam”, diz uma das intérpretes em certa passagem, pelo menos é o que deu para anotar. A dramaturgia não é um tobogã para deslizar os lugares-comuns. Antes, faz destes uma angústia existencial interdita, sufocada pelo tudo para ontem na era das tecnologias digitais.

A correção dos figurinos e gestual alinhados de aeromoça, na abertura, carregando suas malas cheias de cebolas picotadas em seguida, causam estranhamento que abrem os códigos da fragmentação narrativa. A apropriação do kitsch televisivo, dos clichês da sedução publicitária, adicionam critica à irreverência explícita. Que essa dramaturgia colaborativa estilhaçada, sem ser inorgânica, consiga ser mantida na constituição da peça propriamente dita. Há que ser cruel sem perder a brochura. Ah, sim, e encontrar a projeção de voz que falta quando a moça fala do fundo do palco e nos sopra fiapos.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Zona erógena e cócegas

Cena  parte de texto de catalão e é dirigida por André Carreira }  Elenize Dezgeniski Em “Romeu e Julieta”, o frei Lourenço afirma que “Esses prazeres violentos têm finais violentos/ E, em seu triunfo, morrem como o fogo e a pólvora./ Que se consomem quando se beijam”. Para além do fundo histórico e social da tragédia, a impossibilidade da consumação do amor juvenil em Shakespeare talvez nos diga mais sobre a sabotagem dos desejos na contemporaneidade. Um prolongado beijo entre personagens que se dizem irmãos, ele e ela, é um dos múltiplos ruídos propositalmente desestabilizadores em “La Belle Merde”, do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis. A objetividade científica da forma expositiva vem associada à apresentação de seminário ou conferência que aparenta se passar em sala de convenção ou sala de aula, ainda que sugira a neutralidade de um ambiente com uma cadeira e uma mesa discretas, além da luz invariável. Os atores Lara Matos, Lucas Heymanns e Marco Antoni

Pecinhas para uma tecnologia do afeto – o teste – Teatro de ruído

O grupo Teatro de Ruído apresentou sete pequenas cenas espalhadas pelo espaço do Teatro da Caixa, todas em fase de experimentação – e por isso o subtítulo “em teste”. O espectador fica livre para escolher se assiste a uma cena ou se tenta transitar pelo espaço, para assistir pequenos trechos de duas ou mais cenas. Quem não conhece o grupo fica sem ter nenhum critério pra fazer uma escolha, sem nenhum norte que dê uma sugestão de por onde começar. Muitas pessoas, como eu, acabaram não vendo praticamente nada. Outras, que acompanharam alguma cena do início até o fim, ficaram sem perceber o que as cenas poderiam ter de comum, salvo pelos rastros dos dispositivos cênicos espalhados pelo espaço. Mesmo assim, foi possível perceber uma preocupação do grupo com a visualidade das cenas como partes de um todo, o que se expressava por um tratamento comum nos figurinos: os mesmos materiais, cores e texturas. Por outro lado, não havia uma preocupação com a visibilidade das cenas. É como se o públic

Ronca o rancor

Princesa Ricardo (Marinelli) critica e escarnece da onda reacionária  }  Elenize Dezgeniski Provérbios, chavões, lugares-comuns, tanto faz, eles abundam na figura da Princesa Ricardo em “Das Tripas Coração”, arremedo de ópera-bufa em que o performer Ricardo Marinelli captura pela unha a narrativa reacionária que o Brasil nunca viu tão descarada. E dela escarnece apoiada nos vícios de linguagem. Funciona muito bem a analogia dos excessos diante da realidade transbordante, da virulência com que as vozes conservadoras perderam os pudores na desqualificação do diferente. A cena desossa o senso comum e abre outras portas para mostrar que os significados (das coisas, das vidas, das palavras) sofrem um desgaste sem precedentes no atual quadro sociopolítico. Texto-depoimento e ações podem soar literais ou desarmônicas, permitindo ao espectador um exercício permanente de verificar os anacronismos entre fala e expressão corporal que chamam ao pensamento crítico. Para essa figura atabalho