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Molduras abertas

fotos: Elenize Dezgeniski
Cenas do projeto Monocromo biográfico, com a Barridos da Cena, de Curitiba


Seja diante da tela em branco, seja do palco nu, o drama é o mesmo: como preenchê-los? Monocromo biográfico arrisca-se a promover interface entre as artes cênicas e visuais. E o resultado desse experimento é estimulante. Consegue a proeza de expor conceitos que são testados no próprio percurso com o espectador, transmitindo a sensação de obra aberta. Só que a interação já está prevista nas plataformas das dramaturgias que aplica: a palavra em cena e o vídeo documentário na tela.


O performer Clovis Cunha também dirigiu, concebeu o projeto e co-assinou o texto com Giovana Salles Gregório, ambos integrantes do grupo Barridos da Cena. Ele entrecruza a pintura dominantemente azul do francês Yves Klein, cujos “monocromos” teve a chance de acompanhar numa das edições da Bienal de Artes de São Paulo, com os heróis de HQ Quarteto fantástico e com sua própria condição pessoal de artista. Daí o plano biográfico, mas não ao pé da letra. Desnuda-se da masculinidade com a qual foi forjado para meter-se em outra pele. Na era da superexposição, do aparecer a ofuscar o ser, o nu artístico confronta o artístico do nu. E sem histerismo moral.


Essas texturas tinham prato cheio para serem herméticas. No entanto, acompanhamos o trabalho com entusiasmo pelo cuidado com que é exposto, pelos enigmas que propõe sem escantear o público. Isso desde o saguão do teatro, quando Clovis avança entre os presentes com a parte superior do corpo vestida em saco de lixo azul. É esse “personagem” misterioso que veremos em ação no sofá branco, em movimentos e narrações diretas que dialogam com o conteúdo audiovisual da tela.


A partir daí, instaura-se a viagem com paródias pontuais, como a marcação do tempo de “15 minutos” no vídeo, numa referência à Mostra, a sugerir que haverá contagem regressiva, mas esse “controle” logo é sabotado. Os segmentos ficcionalizados ao vivo soam mais frágeis sob a capa de um herói de quadrinhos, talvez porque predisponham à “interpretação”, à máscara do “personagem”.


Seguimos essas camadas do que é falso ou verdadeiro, de manipulação clara dos materiais disponíveis (esse código transparece o tempo todo para o espectador, mesmo quando nas enquetes do filme “biográfico”, o que denota postura ética dos artistas envolvidos), numa sobreposição de planos que emendam inquietações existenciais e relativas ao ato criador. Um experimento que contagia.

Comentários

Anônimo disse…
Ainda achei a cena bastante hermética, mas seu texto joga luz sobre ela.
Maravilha, Júlia.
o teatro é matéria prisma: cada raio reflete conforme o olho de quem vê e sente...
nosso abraço!

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