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Escuta

fotos: Luana Navarro
Cena de Sobre reparações necessárias, fusão com dança contemporâneos pela Obragem Teatro e Companhia, de Curitiba



É da natureza do teatro nos convocar a visão, mas algumas criações aguçam outros sentidos, como o tato, o cheiro, a escuta. Esta pediu contracenação à parte na noite de domingo que apresentou três grupos locais dos mais ativos. Na verdade não era o sinal de vai tomar no cu, da simbiose Os Iconoclastinhas/Companhia Provisória, demandou uma sintonia com a musicalidade da palavra. É a partir dela que vêm as imagens em uma cena fixada em mínimos elementos, essencialmente apoiada no osso verbal de três vozes que ricocheteiam feito Samuel Beckett.

A escuta em Sobre reparações necessárias, da Obragem Teatro e Companhia, pede diálogo com silêncios interiores. O vocabulário dominante é o dos gestos e movimentos em três corpos que pulsam uma poética do orgânico, interdependência de braços, pernas, troncos e corações para ecoar memórias impregnadas. Os desvios para a palavra não o são para que esta venha bancar razões, ao contrário, imprime leituras ainda mais subjetivas, em sutilezas coronárias casadas com a alma do existir.

Já entre as opções de O beijo no meio da noite, pela Vigor Mortis, está o desprezo solene pela palavra. É o que traduz o descuido nas falas inauditas do elenco em boa parte da apresentação. O foco é ilustrar o clima de suspense a todo custo, com sonoplastia acachapante e uma luz bem desenhada em sombras convenientes à proposta estética do grand guignol. Mas esse elogio do artifício, em que a presença dos atores é tão estratégica como as peças de xadrez no tabuleiro, faz com que o riso da platéia provenha desse patético a priori e não sonde outras variantes humanas do horror na dramaturgia urdida.

No conjunto, as três cenas irradiam as contradições de um tempo em que as sociedades estimulam a dizer muitas coisas por meio da imagem, saturando-as de significados, o muito que redunda em pouco. A articulação da fala e da escrita despencam ladeira abaixo nas relações. Por isso, quem sabe, tantos corpos mudos-de-modos-brutos e tantas falas vociferando no vazio. Ninguém se escuta.

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