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Terrir


fotos: Luana Navarro
Cena de O beijo no meio da noite, fragmento apresentado pela Vigor Mortis, de Curitiba


É raro deparar com pesquisa cênica defendida com consistência e continuidade como o faz a Vigor Mortis, a temida companhia de Curitiba - com o perdão do trocadilho para com seus artistas que, faz 11 anos, dedicam-se a temas relacionados à violência e ao horror, como vimos nas montagens de Morgue story - O filme, Graphic e Hitchcock blonde. A estilização alcança patamares cada vez mais expressivos no jeito de contar e ilustrar histórias com a inclinação recente para o Grand Guignol, o gênero que irradiou da Paris do início do século XX e é refletido em O beijo no meio da noite, que encerrou o painel de cenas da Mostra no domingo - o encontro terminou de fato na noite seguinte, dia 10.


Diretor e co-fundador da companhia, Paulo Biscaia Filho é um estudioso e um entusiasta do gênero suspense e suas possibilidades co-irmãs do cinema, fonte primordial nos projetos. O quadro oriundo da obra do francês Maurice Level (1875-1937) antagoniza um homem e uma mulher em sede de vingança regada a ácido sulfúrico como pretexto de um estranho amor.

Eficiente no quesito ambientação (elementos de luz, som e cenografia "claustrofóbicos"), o trabalho deixa a desejar na interpretação, sempre um risco de incorrer em exageros quando os contornos dramáticos podem trilhar outras dinâmicas. Isso era mais bem solucionado em Graphic.

No fragmento a que assistimos, ficou patente o desequilíbrio na voz – ferramenta seminal na linguagem perseguida - dos papéis do homem e da enfermeira, respectivamente Wagner Corrêa e Rafaella Marques, se comparados à freira de Sheylli Caleffi e à mulher “fatal” de Michelle Pucci. O enunciar artificioso destoou do que é naturalmente arquetípico no gênero, diluindo o poder de convencimento. Uma equação entre a imagem e a palavra com a qual Paulo lida desde quando despertou para o tipo de investigação que, como o filme B, tem sua razão artística de ser.

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