Pular para o conteúdo principal

E ela abriu os olhos debaixo d'água - Cia de Alguém



A cena da Cia de Alguém, intitulada “E ela abriu os olhos debaixo d’água”, é parte do processo de uma peça em fase de construção. No entanto, a cena apresentada revela alguns traços de acabamento. Algumas soluções foram aplicadas à massa de experimentação. Por um lado, isso revela um cuidado, uma preocupação com o espectador – ou uma pressa de significar alguma coisa logo. Por outro lado, esse acabamento acaba por maquiar, de certa forma, o processo em si, dando contorno a um desenho que ainda seria, naturalmente, disforme. Isso pode despertar uma reflexão a respeito do que é prioridade no processo de criação e de como um ponto de partida para uma obra de arte (um tema, uma dinâmica de relação, um conceito) se desenvolve e ganha forma.
Quanto à primeira questão (o que é prioridade no processo de criação) é possível perceber que a cena aponta para duas perspectivas do grupo: a importância dos próprios procedimentos de treinamento e uma ansiedade de materialização das ideias que estão em jogo. A co-existência das duas perspectivas acabou por produzir uma materialização dos procedimentos internos do grupo na cena. Esta exposição de mecanismos ganhou uma dimensão um pouco desproporcional e, por assim dizer, roubou a cena. A movimentação, a sonorização, os figurinos e a segmentação do espaço ganharam mais visibilidade do que a relação entre as personagens e a situação em que se encontram.
Tendo essa questão em vista, podemos nos perguntar sobre a segunda questão (o “como” esse ponto de partida ganha forma). Se o “como” está roubando a cena, talvez seja o caso de pensar que este “como” se tornou, em vez de ferramenta, um obstáculo para o desenvolvimento da questão inicial do trabalho. Parece ter acontecido nesta cena uma complexificação a mais no desenvolvimento do tema. A falta da memória já pressupõe uma fragmentação de ideias. O fato de que o grupo é formado por cinco atrizes e a peça só tem duas personagens é mais um aspecto que chama a fragmentação. Em vez de partir desta complexidade implícita e simplificar (o que não quer dizer explicar ou reduzir), a opção do grupo foi a de complexificar ainda mais o material bruto. Com isso, o que poderia ser translúcido ficou opaco. Mas a memória intacta de uma das personagens lança luz sobre a amnésia da outra, e o “mundo aquático”, em que o grupo se propôs a fazer uma imersão poética, é translúcido. É a partir dessa associação de ideias que penso que o conteúdo, potencialmente translúcido, se tornou opaco pela ansiedade da forma.Muito poderia ser dito ainda sobre a cena, mas acredito que, para cenas breves, é melhor que os comentários também sejam breves. Para este processo da Cia de Alguém, penso que o mais importante agora seja considerar a possibilidade de deixar de lado a preocupação com a forma, mesmo numa situação de apresentação do processo, e deixar o tal mundo aquático da memória revelar sua própria forma espontaneamente. Assim, o grupo vai ter mais liberdade para encontrar, também, a sua própria identidade.

Por Daniele Avila
Foto: Elenize Dezgeniski

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Zona erógena e cócegas

Cena  parte de texto de catalão e é dirigida por André Carreira }  Elenize Dezgeniski Em “Romeu e Julieta”, o frei Lourenço afirma que “Esses prazeres violentos têm finais violentos/ E, em seu triunfo, morrem como o fogo e a pólvora./ Que se consomem quando se beijam”. Para além do fundo histórico e social da tragédia, a impossibilidade da consumação do amor juvenil em Shakespeare talvez nos diga mais sobre a sabotagem dos desejos na contemporaneidade. Um prolongado beijo entre personagens que se dizem irmãos, ele e ela, é um dos múltiplos ruídos propositalmente desestabilizadores em “La Belle Merde”, do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis. A objetividade científica da forma expositiva vem associada à apresentação de seminário ou conferência que aparenta se passar em sala de convenção ou sala de aula, ainda que sugira a neutralidade de um ambiente com uma cadeira e uma mesa discretas, além da luz invariável. Os atores Lara Matos, Lucas Heymanns e Mar...

Ronca o rancor

Princesa Ricardo (Marinelli) critica e escarnece da onda reacionária  }  Elenize Dezgeniski Provérbios, chavões, lugares-comuns, tanto faz, eles abundam na figura da Princesa Ricardo em “Das Tripas Coração”, arremedo de ópera-bufa em que o performer Ricardo Marinelli captura pela unha a narrativa reacionária que o Brasil nunca viu tão descarada. E dela escarnece apoiada nos vícios de linguagem. Funciona muito bem a analogia dos excessos diante da realidade transbordante, da virulência com que as vozes conservadoras perderam os pudores na desqualificação do diferente. A cena desossa o senso comum e abre outras portas para mostrar que os significados (das coisas, das vidas, das palavras) sofrem um desgaste sem precedentes no atual quadro sociopolítico. Texto-depoimento e ações podem soar literais ou desarmônicas, permitindo ao espectador um exercício permanente de verificar os anacronismos entre fala e expressão corporal que chamam ao pensamento crítico. Para essa figura...

A camiseta que habito

Clarissa Oliveira em 'Que Bom Que Você Entendeu...'  }  Elenize Dezgeniski A Companhia Transitória encampa um depoimento antiviolência contra a mulher em “Que Bom Que Você Entendeu Que Estou Tão Perdida Quanto Você”. Proposição tudo a ver com as letras de uma banda californiana que marcou a década de 1990 com pegadas punk e grunge, o Hole, influência confessa da diretora e dramaturga Nina Rosa Sá e cujas canções, em geral, versam sobre os malefícios da sociedade patriarcal, permissiva ao assédio, às agressões física e psicológica, à cultura do estupro. Questões de identidade, de sexualidade e de imagem corporal que aparecem, por exemplo, na letra de “Celebrity Skin” (pele de celebridade, 1998), interpretada pela vocalista e guitarrista Courtney Love. Há uma atitude independente e indignada na disposição e nas falas das atrizes Ludmila Nascarella, Clarissa Oliveira e Ana Larousse. Seus discursos afirmativos são unívocos (efeito colateral do tom monocórdio das voze...