A Súbita Companhia de Teatro apresenta, com “Coração de congelador”, uma cena criada especialmente para a Mostra. Com isso, aparece naturalmente uma noção de dramaturgia diferente do que nas cenas em processo ou nas cenas que foram recortadas de espetáculos prontos. Para falar sobre a interseção entre a dor e o amor, o grupo apresenta uma espécie de prólogo, duas cenas de dois casais com dinâmicas de relação equivalentes e uma cena com os quatro atores que oferece um movimento crescente até a finalização.
O prólogo é bastante rígido e revela, como na cena da Cia de Alguém, o gosto pelos procedimentos internos do trabalho do ator. O esgarçamento de uma ou duas frases e a fragmentação desse pequeno texto em quatro vozes parece autorreferente a ponto de não convidar o espectador a entrar no jogo. As cenas seguintes são mais sedutoras, têm traços ora comoventes ora cômicos, embora ingênuas na sua forma. Acredito que isso se deva também ao fato de que entra em cena o tema do amor. Mas a relação com o tema e com a dinâmica de relação entre os dois casais fica um tanto expositiva e, no lugar do encontro do amor com a dor, o que vemos é o encontro do amor com a ansiedade. Essa ansiedade entra em cena de maneira um tanto literal. Na cena do casal que permanece parado no mesmo lugar e tem gestos mais lentos, é possível ver uma tensão corporal e uma intensidade na expressão do rosto que acabam por sobrepor o “estar em cena” ao “fazer a cena”. Na cena do casal que leva a cabo a proposta de fazer uma cena muito intensa da maneira oposta, se movimentando sem parar e falando rápido, a exposição da ansiedade também fica bastante evidente.
A intensidade no comportamento físico do elenco, além de trazer à tona a imprecisão do instrumental de cada um, provoca uma saturação precoce na cena. É como se o espectador fosse bombardeado de signos, como se o corpo de cada ator estivesse se esforçando para preencher toda a visualidade do palco. Mas nem o amor nem a dor são tão expansivos – eles têm até mesmo a sua cota de retração, de interiorização, o que não aparece nesta apresentação da Súbita Companhia.
Na última cena, o grupo parece, num primeiro momento, ter se distanciado ainda mais da proposta temática, da relação entre o amor e a dor, mas, por outro lado, fica a impressão de que entra em cena um novo componente que se relaciona diretamente com a dor de amor: o tempo. O tempo parece ser o protagonista dessa última cena. Nela, os sujeitos são praticamente atropelados pelo cotidiano, pela velocidade em que a vida corre. Uma música dá a dinâmica da cena: a letra descreve situações, mencionando objetos. Os objetos vão entrando em cena, passando de mão em mão. Apesar da dinâmica da cena investir radicalmente na repetição e correr o risco de se esgotar logo, o conjunto da realização é tão singelo que a cena ganha sentido.
A repetição não é, nesta cena, uma exposição de um procedimento interno ou uma formalização postiça. Ela tem significado, oferece ao espectador algumas possibilidades de fruição. É possível pensar que os objetos, apesar de nomeados e reapresentados visualmente, exercem uma ação sobre os sujeitos, a ação do tempo. E, na preocupação de dar conta de lidar com tantas ações físicas concretas num ritmo imposto pela música, os atores param de fazer força para estar em cena e, quase por acidente, a presença de cada um acontece. É neste momento que aparecem os primeiros traços da autenticidade do grupo e, ao mesmo tempo, se estabelece uma distância radical das premissas que estavam em jogo na cena inicial.
Por Daniele AvilaFoto: Elenize Dezgeniski
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