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Altos e baixos - Cia de Palhaços


Para analisar uma cena de palhaços, a minha condição de estrangeira fica ainda mais acentuada: não sei nada sobre palhaços, suas técnicas, suas poéticas e tradições. O que posso pensar e dizer é como espectadora especialmente interessada. Assim, faço algumas perguntas ingênuas. O que faz o palhaço fora do universo infantil? Quem se desloca? O espectador, que é infantilizado? Ou o palhaço, cujas premissas são problematizadas pelo deslocamento? Se o palhaço pode simplesmente ser um animador de festas, o que muda quando ele passa para o universo de criação artística?

Especulando sobre essas questões, acho que é possível pensar que quem faz o deslocamento maior é o próprio palhaço, embora a presença do palhaço naturalmente problematize a condição do espectador e provoque o seu deslocamento. O palhaço, fora do universo infantil, se transforma. Ele tem a possibilidade de subverter o contexto, não apenas quando distorce as coisas, mas, penso que principalmente quando ele consegue fazer um corte no que já está dado, quando ele consegue provocar um certo choque. Nesse sentido, a cena “Altos e baixos”, por mais divertida e simpática que seja, parece estar próxima demais do universo infantil do palhaço, mesmo que o tema abordado seja um tema adulto. O tratamento dado ao tema ficou no universo infantil.
Quais seriam as ferramentas que o palhaço poderia usar para fisgar o espectador adulto? Talvez seja possível pensar em trazer à tona um elemento característico do palhaço que fica mascarado no universo infantil, mas que, em alguma medida, está lá: a perversidade. O perverso é um elemento que parece estar na figura do palhaço, seja nas situações mais comuns dos números circenses (fazer o outro tropeçar, cair, se sujar, etc.), seja na própria aparência do palhaço, em que o que ele tem de mais incomum, estranho, torto ou feio, é acentuado e apontado como risível.

Fica a impressão de que a Cia de Palhaços se deixou contaminar pelo próprio carisma, pela própria simpatia, mas essas mesmas características poderiam ser usadas do avesso. (O palhaço não é uma figura meio do avesso?) Tive a sensação de que, como espectadora, eu estava rindo com os palhaços, mas o que seria perverso (se é que a minha ideia sobre a perversão na poética do palhaço faz algum sentido) seria rir dos palhaços. Com isso, a cena não seria simplesmente cômica, mas também provocativa e, quem sabe, comovente. E eu, como espectadora, não estaria simplesmente rindo, mas o meu riso seria atravessado por alguma outra coisa, por algum deslocamento que aquelas figuras distorcidas poderiam me provocar.

Por Daniele Avila
Foto: Elenize Desgeniski

Comentários

Anônimo disse…
"Para analisar uma cena de palhaços, a minha condição de estrangeira fica ainda mais acentuada: não sei nada sobre palhaços, suas técnicas, suas poéticas e tradições". Isso explica muita coisa. Seria interessante você conhecer um pouco mais a respeito do universo sobre o qual você escreve. Uma pessoa que se propõe a escrever críticas teatrais tem obrigação de assistir mais espetáculos e procurar se informar melhor. Uma crítica não fundamentada torna-se nula e acaba virando motivo de chacota.
Anônimo disse…
"Espectadora especialmente interessada"?! Seria essa a funçao e a especificidade da critica?
enfim, para mim é de uma IRRESPONSABILIDADE muito grande estar na funçao de critica de um EVENTO e não ter conhecimento sobre o que vai se escrever. Discordo completamente de que a cena Altos e Baixos de um tratamento infantil para a cena, e acredito que a forma como os dois intérpretes se expoem em cena e de uma generosidade e de um risco muito grande, o que mereceria ser apontado.
fico extremamente indignado com a forma rasa da critica de Daniela Avila, que novamente acredito ser de uma grande irresponsabilidade
Achamos interessante e ficamos gratos com este tipo de troca e retorno, tanto de quem escreve a critica quanto dos comentários. Abçs cia dos palhaços.

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