Pular para o conteúdo principal

Calçolas

Foto: Elenize Dezgenisk

Texto: Daniel Schenker

Calçolas escancara diante do público uma tomada de posição em relação à perpetuação da dependência e da subserviência da mulher que, mesmo após a derrocada dos tabus comportamentais e das instituições (a começar pela familiar), ainda sente insegurança em não aderir a um modelo de estabilidade traduzido no casamento em moldes convencionais. “Mulher, a sua felicidade está em mãos alheias?”, questiona a atriz Lisa Vietra, trajando um vestido de noiva, antes de começar a se desnudar frente à plateia.

A obviedade do discurso desgastado, realçado pelo tom panfletário com que é proferido, prejudica a apresentação de Calçolas, trabalho do Núcleo Vagapara. Quase tudo soa deja vu: a comparação entre a contemporaneidade e a época do “sutiã queimado”, o destaque ao descompasso entre a escalada profissional feminina e a carência afetiva e o próprio desnudamento da atriz, como que se despojando de couraças e máscaras sociais. Apesar da potência com que Lisa Vietra fala o texto (que escreveu em parceria com a diretora Cláudia Barral), seu trabalho sofre com a falta de sutileza evidente na concepção da cena e com o apego a contrastes reducionistas – a exemplo do momento em que alterna uma voz autoritária de comando com uma sonoridade doce de menina.

Comentários

Lisavietra disse…
Eu sou eu, meu trabalho e minha bandeira; que carrego porque identifico pedregulhos dentro do sapato - não no passado, mas bem vivos aqui e agora. Se eu deixar passar batido, por parecer "fora de moda", nunca mais eu durmo...
Ricardo Nolasco disse…
LisaVietra, meu coração também grita isso diariamente. Sou minha bandeira.

Até Breve

Postagens mais visitadas deste blog

Zona erógena e cócegas

Cena  parte de texto de catalão e é dirigida por André Carreira }  Elenize Dezgeniski Em “Romeu e Julieta”, o frei Lourenço afirma que “Esses prazeres violentos têm finais violentos/ E, em seu triunfo, morrem como o fogo e a pólvora./ Que se consomem quando se beijam”. Para além do fundo histórico e social da tragédia, a impossibilidade da consumação do amor juvenil em Shakespeare talvez nos diga mais sobre a sabotagem dos desejos na contemporaneidade. Um prolongado beijo entre personagens que se dizem irmãos, ele e ela, é um dos múltiplos ruídos propositalmente desestabilizadores em “La Belle Merde”, do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis. A objetividade científica da forma expositiva vem associada à apresentação de seminário ou conferência que aparenta se passar em sala de convenção ou sala de aula, ainda que sugira a neutralidade de um ambiente com uma cadeira e uma mesa discretas, além da luz invariável. Os atores Lara Matos, Lucas Heymanns e Mar...

Ronca o rancor

Princesa Ricardo (Marinelli) critica e escarnece da onda reacionária  }  Elenize Dezgeniski Provérbios, chavões, lugares-comuns, tanto faz, eles abundam na figura da Princesa Ricardo em “Das Tripas Coração”, arremedo de ópera-bufa em que o performer Ricardo Marinelli captura pela unha a narrativa reacionária que o Brasil nunca viu tão descarada. E dela escarnece apoiada nos vícios de linguagem. Funciona muito bem a analogia dos excessos diante da realidade transbordante, da virulência com que as vozes conservadoras perderam os pudores na desqualificação do diferente. A cena desossa o senso comum e abre outras portas para mostrar que os significados (das coisas, das vidas, das palavras) sofrem um desgaste sem precedentes no atual quadro sociopolítico. Texto-depoimento e ações podem soar literais ou desarmônicas, permitindo ao espectador um exercício permanente de verificar os anacronismos entre fala e expressão corporal que chamam ao pensamento crítico. Para essa figura...

Desencanto vital

Nolasco, Melina e Machado estão entre os 'Outros Sobreviventes'  }  Elenize Dezgeniski Nem a fascinação nem a resignação. “Essa é a nossa linguagem!”, alguém avisa. O caminho do meio expandido e forrado de aptidões possíveis. A ação cênica “Outros Sobreviventes”, do Coletivo Mamulengos de Mameluri, mergulha no vale dos vácuos desencantados e de lá processa a capacidade de resiliência em produzir transformação, moto-contínuo de quem lida com arte. Há um pendor cumulativo na capacidade gregária de atrair trabalhadores cênicos de outros grupos de Curitiba e fazer do palco o seu terreno baldio a ser ocupado por/de figuras estranhas, objetos de filiações as mais diversas (livros, sofás, galões, figurinos soltos, etc.). Não deixa de ser uma demarcação para libertar-se daquilo que te prende: o teatro. Sobretudo seu desenho físico gerador de expectativas amortecidas, ou assim alimentadas pela maioria conformista daqueles que o habitam provisoriamente, independente da natureza arq...