Pular para o conteúdo principal

O desejo de transgressão

por Luciana Romagnolli
"Monstre Julia". Foto de Lidia Sanae Ueta.
Como pensar uma criação artística que se concebe como um processo de muitas etapas com base somente no evento de uma cena breve? Por outro lado, como escapar dos limites desse evento, se é a ele apenas que o público tem acesso no momento? É necessária uma cena que se baste, com independência, ou vale a visão de um fragmento deslocado do todo no qual seus sentidos se realizam? São indagações despertadas por "Monstre Julia", do Grupo de Investigação Cênica Heliogabalus.

O trabalho nasce das inquietações pessoais de Semy Monastier. E talvez aí esteja, ainda, o limite de seu alcance. No debate desta manhã, a atriz/performer disse que o principal encontro que se dá em cena é seu com Julia, a personagem de August Strindberg para a qual a artista imagina um desfecho sem suicídio e transportado para o mundo contemporâneo. A relação intraficcional entre atriz e personagem, portanto, está delineada, mas em nenhum momento é explicitada para quem senta na plateia. Falta maior atenção ao eixo extraficcional, ou seja, como isso é comunicado ao público.

O que chega - ao menos pela minha experiência de expectação - é a intenção transgressora associada ao rock, ao figurino que expõe a seminudez da atriz e ao discurso que enfrenta o pai e celebra o embriagar-se. Mais intenção do que transgressão real, uma vez que a zona de conforto dos performes e dos espectadores não é ameaçada. Ou, quando é, com a revelação involuntária do seio da atriz, rapidamente se apazigua num gesto de cobrir o corpo, consciente ou não.

Pois é justamente esse corpo, envolvido em tecido transparente e sob efeito da luz, que forja imagens e instaura uma sinestesia que preenchem a cena e afetam o espectador. Ajustar as energias corporais e tecnológicas empregadas, considerando a experiência de recepção, pode ser importante para que a cena ultrapasse o desejo individual da atriz e encontre ressonância no público.

Comentários

Anônimo disse…
" Parabéns...Laborioso,tenaz...contudo recorrente !




Um Admirador !

Postagens mais visitadas deste blog

Ronca o rancor

Princesa Ricardo (Marinelli) critica e escarnece da onda reacionária  }  Elenize Dezgeniski Provérbios, chavões, lugares-comuns, tanto faz, eles abundam na figura da Princesa Ricardo em “Das Tripas Coração”, arremedo de ópera-bufa em que o performer Ricardo Marinelli captura pela unha a narrativa reacionária que o Brasil nunca viu tão descarada. E dela escarnece apoiada nos vícios de linguagem. Funciona muito bem a analogia dos excessos diante da realidade transbordante, da virulência com que as vozes conservadoras perderam os pudores na desqualificação do diferente. A cena desossa o senso comum e abre outras portas para mostrar que os significados (das coisas, das vidas, das palavras) sofrem um desgaste sem precedentes no atual quadro sociopolítico. Texto-depoimento e ações podem soar literais ou desarmônicas, permitindo ao espectador um exercício permanente de verificar os anacronismos entre fala e expressão corporal que chamam ao pensamento crítico. Para essa figura...

Zona erógena e cócegas

Cena  parte de texto de catalão e é dirigida por André Carreira }  Elenize Dezgeniski Em “Romeu e Julieta”, o frei Lourenço afirma que “Esses prazeres violentos têm finais violentos/ E, em seu triunfo, morrem como o fogo e a pólvora./ Que se consomem quando se beijam”. Para além do fundo histórico e social da tragédia, a impossibilidade da consumação do amor juvenil em Shakespeare talvez nos diga mais sobre a sabotagem dos desejos na contemporaneidade. Um prolongado beijo entre personagens que se dizem irmãos, ele e ela, é um dos múltiplos ruídos propositalmente desestabilizadores em “La Belle Merde”, do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis. A objetividade científica da forma expositiva vem associada à apresentação de seminário ou conferência que aparenta se passar em sala de convenção ou sala de aula, ainda que sugira a neutralidade de um ambiente com uma cadeira e uma mesa discretas, além da luz invariável. Os atores Lara Matos, Lucas Heymanns e Mar...

Desencanto vital

Nolasco, Melina e Machado estão entre os 'Outros Sobreviventes'  }  Elenize Dezgeniski Nem a fascinação nem a resignação. “Essa é a nossa linguagem!”, alguém avisa. O caminho do meio expandido e forrado de aptidões possíveis. A ação cênica “Outros Sobreviventes”, do Coletivo Mamulengos de Mameluri, mergulha no vale dos vácuos desencantados e de lá processa a capacidade de resiliência em produzir transformação, moto-contínuo de quem lida com arte. Há um pendor cumulativo na capacidade gregária de atrair trabalhadores cênicos de outros grupos de Curitiba e fazer do palco o seu terreno baldio a ser ocupado por/de figuras estranhas, objetos de filiações as mais diversas (livros, sofás, galões, figurinos soltos, etc.). Não deixa de ser uma demarcação para libertar-se daquilo que te prende: o teatro. Sobretudo seu desenho físico gerador de expectativas amortecidas, ou assim alimentadas pela maioria conformista daqueles que o habitam provisoriamente, independente da natureza arq...