Pular para o conteúdo principal

Jogo de cena de uma travesti

por Luciana Romagnolli


"Trajetória PL". Foto de Lidia Sanae Ueta.
Em junho, quando Pedro Silveira apresentou a cena "Trajetória PL" em Belo Horizonte, no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, escrevi o seguinte texto, que considero ainda válido para esta 8ª Mostra Cena Breve:

Trajetória ‘PL’, de Brasília, se apresenta como o relato documental de uma jovem travesti que resolve encenar sua própria história após vê-la narrada em uma montagem teatral por um ator profissional. O jogo de cena se estabelece, confundindo qual seria exatamente a relação do ator que vemos no palco – Pedro Silveira, dirigido por Fernando Villar – com a biografia que conta.
 
Insinua-se o borramento do limite entre realidade e ficção, reforçado pela fala coloquial e pretensamente espontânea, acompanhada de meticuloso gestual, igualmente calculado para parecer natural. O paradoxo está aí: quanto mais a cena convence como registro documental ou hiperrealista, mais se estabelece a ilusão.

Sozinha diante de uma plateia que supostamente lhe faz perguntas sobre sua vida, a personagem faz um monólogo dialógico, estruturado como respostas à sociedade. Expõe-se em trejeitos femininos e na falta de estudo denunciada pela fala “errada” - e o público ri. Mas, aos poucos, fica clara a inconsciência (por parte da travesti) da gravidade das agressões e explorações que sofre. “Sou soropositiva, mas sou positiva”, diz, graciosa. Então, sem mudar de tom, a figura que antes causava riso consegue o difícil efeito de emudecer o público. A consciência crítica se impõe e vira a chave do cômico para o reflexivo.

A poesia do canto final termina de garantir o arrebatamento e a adesão ao personagem e ao ator, que transita tranquilamente entre o feminino e o masculino.
 
É curioso notar que a apresentação de ontem à noite, na 8ª Mostra Cena Breve, trouxe uma diferença no encontro com o público - seja por características locais ou por especificidades do ritmo da atuação em cada apresentação. Os mineiros reagiram à toda primeira parte da cena com muitos risos, numa leitura cômica que se calou diante do agravamento do discurso. Em Curitiba, desde o início o humor surgiu pontualmente, a reação dos espectadores foi mais sóbria.
    

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Coração acéfalo/Boca desgarrada - Companhia Subjétil

A cena da Companhia Subjétil apresenta uma característica interessante dentro do contexto da Mostra: a construção da dramaturgia para os sugeridos 15 minutos de apresentação em uma dinâmica coerente com a utilização do tempo. Na maior parte das outras cenas assistidas até agora, mesmo nas que foram pensadas especificamente para a Mostra, a duração ficou um pouco marcada como uma premissa externa – seja por insuficiência de tempo para que o espectador encontre um fio condutor para si, seja por uma tentativa de preencher os quinze minutos com o maior número possível de signos. “Coração acéfalo/Boca desgarrada” tem uma cadência própria. Em outras apresentações, os 15 minutos foram divididos em mais de uma cena, às vezes cada uma com uma tônica diferente. Isso não é necessariamente um problema, afinal a Mostra abre possibilidades para uma variedade de propostas, mas dentro de um horizonte de convivência, me pareceu que essa particularidade da cena da Companhia Subjétil fez uma diferença pa

Sem pena

O performer Zé Reis na provocadora cena 'Pós-Frango'  }  Elenize Dezgeniski A objetificação da mulher é tão brutal na sociedade machista que quando ocorre o inverso – o corpo masculino tratado como carne na vitrine –, poucos se dão conta. A performance Pós-frango faz uma articulação estética e filosoficamente bem urdida dessa espécie de contradição. O ator e dançarino Zé Reis, da companhia brasiliense Errante, perpassa imagens figurativas e disruptivas. Pelado, ele alude a estereótipos e convenções a partir de um corpo escultórico, evidenciando músculos que servem ao gogo boy ou ao fisiculturismo. E à arte, claro. Como as aparências enganam, mas, enfim, aparecem – já dizia Leminski –, os desfazimentos dessa plasticidade fútil por volumes e relevos outros tornam as suspensões poeticamente forjadas nesse mesmo corpo sobreposições maleáveis e sofisticadas desse mesmo material capturado do registro grosso da paisagem urbana. Estendido de uma ponta à outra na dianteira do palc

Zona erógena e cócegas

Cena  parte de texto de catalão e é dirigida por André Carreira }  Elenize Dezgeniski Em “Romeu e Julieta”, o frei Lourenço afirma que “Esses prazeres violentos têm finais violentos/ E, em seu triunfo, morrem como o fogo e a pólvora./ Que se consomem quando se beijam”. Para além do fundo histórico e social da tragédia, a impossibilidade da consumação do amor juvenil em Shakespeare talvez nos diga mais sobre a sabotagem dos desejos na contemporaneidade. Um prolongado beijo entre personagens que se dizem irmãos, ele e ela, é um dos múltiplos ruídos propositalmente desestabilizadores em “La Belle Merde”, do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis. A objetividade científica da forma expositiva vem associada à apresentação de seminário ou conferência que aparenta se passar em sala de convenção ou sala de aula, ainda que sugira a neutralidade de um ambiente com uma cadeira e uma mesa discretas, além da luz invariável. Os atores Lara Matos, Lucas Heymanns e Marco Antoni