Pular para o conteúdo principal

A experiência do feminino

por Luciana Romagnolli
"As Tetas de Tirésias...". Fotos de Lidia Sanae Ueta.
Do mito evocado na cena “As Tetas de Tirésias – Jaculatória para Comer um Coração Paternal” emerge a disputa de gêneros centrada na experiência de ser mulher. Na tradição grega, Tirésias é o homem transformado em mulher ao matar uma cobra-fêmea, para então retornar como homem após matar uma macho. Por sua vivência única dos dois gêneros, é incitado pelos deuses a afirmar de qual é a supremacia no gozo. Ao responder que feminina, causa a ira de Hera, que o cega, mas por Zeus é compensado com o dom da profecia.

Na criação do grupo Estábulo de Luxo, esse arquétipo transexual ressurge liberto de um enredo trágico, nutrindo o imaginário das figuras representadas pelas duas atrizes – Guaraci Martins e Danielle Campos. O feminino triunfa em seu aspecto agressivo, de uma potência de morte e revolução. Aludindo à Maria Bonita, Danielle carrega a imagem de uma mulher com a brutalidade do cangaço e a sensualidade/maternidade de um seio pendendo nu. Atravessa o corredor da plateia exibindo seu facão num cruzamento de olhares hostil com os espectadores, de modo a estabelecer a tensão inicial da cena.

Essa Maria Bonita é atualizada em uma associação do seu bando à pirataria virtual, representativa do tipo de operação praticada pelo grupo, capaz de despregar os ícones de seu contexto, evidenciando as forças que os movem, em tensão com a experiência contemporânea de vida e as questões dela deflagradas. Maquiagem, figurino e vozes afirmam mulheres fortes, desejantes e viris, com domínio sobre seus corpos contra padrões impostos – se reivindicam o direito de serem monstros, conforme manifestado pelo grupo, é o polvo erigido em cena o símbolo dessa monstruosidade com a qual se harmonizam.

Em meio a uma estética que absorve o que está estabelecido como mau gosto, o hibridismo – homem-mulher, humano-monstro – atinge também a concepção da cena, ironicamente. Guaraci protagoniza um epílogo com atuação empostada, num momento “teatrão”, démodé, sobre o qual a consciência contemporânea age num estalo de constrangimento diante do público, que deflaga o desfecho cômico e inusitado de uma fuga cortina abaixo.

Comentários

Jorge Ramiro disse…
Eu gosto muito de poesia, eu trabalho em uma fábrica de bebedouro para cães e no meu tempo livre eu escrevo poesia.

Postagens mais visitadas deste blog

Coração acéfalo/Boca desgarrada - Companhia Subjétil

A cena da Companhia Subjétil apresenta uma característica interessante dentro do contexto da Mostra: a construção da dramaturgia para os sugeridos 15 minutos de apresentação em uma dinâmica coerente com a utilização do tempo. Na maior parte das outras cenas assistidas até agora, mesmo nas que foram pensadas especificamente para a Mostra, a duração ficou um pouco marcada como uma premissa externa – seja por insuficiência de tempo para que o espectador encontre um fio condutor para si, seja por uma tentativa de preencher os quinze minutos com o maior número possível de signos. “Coração acéfalo/Boca desgarrada” tem uma cadência própria. Em outras apresentações, os 15 minutos foram divididos em mais de uma cena, às vezes cada uma com uma tônica diferente. Isso não é necessariamente um problema, afinal a Mostra abre possibilidades para uma variedade de propostas, mas dentro de um horizonte de convivência, me pareceu que essa particularidade da cena da Companhia Subjétil fez uma diferença pa

Sem pena

O performer Zé Reis na provocadora cena 'Pós-Frango'  }  Elenize Dezgeniski A objetificação da mulher é tão brutal na sociedade machista que quando ocorre o inverso – o corpo masculino tratado como carne na vitrine –, poucos se dão conta. A performance Pós-frango faz uma articulação estética e filosoficamente bem urdida dessa espécie de contradição. O ator e dançarino Zé Reis, da companhia brasiliense Errante, perpassa imagens figurativas e disruptivas. Pelado, ele alude a estereótipos e convenções a partir de um corpo escultórico, evidenciando músculos que servem ao gogo boy ou ao fisiculturismo. E à arte, claro. Como as aparências enganam, mas, enfim, aparecem – já dizia Leminski –, os desfazimentos dessa plasticidade fútil por volumes e relevos outros tornam as suspensões poeticamente forjadas nesse mesmo corpo sobreposições maleáveis e sofisticadas desse mesmo material capturado do registro grosso da paisagem urbana. Estendido de uma ponta à outra na dianteira do palc

Zona erógena e cócegas

Cena  parte de texto de catalão e é dirigida por André Carreira }  Elenize Dezgeniski Em “Romeu e Julieta”, o frei Lourenço afirma que “Esses prazeres violentos têm finais violentos/ E, em seu triunfo, morrem como o fogo e a pólvora./ Que se consomem quando se beijam”. Para além do fundo histórico e social da tragédia, a impossibilidade da consumação do amor juvenil em Shakespeare talvez nos diga mais sobre a sabotagem dos desejos na contemporaneidade. Um prolongado beijo entre personagens que se dizem irmãos, ele e ela, é um dos múltiplos ruídos propositalmente desestabilizadores em “La Belle Merde”, do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis. A objetividade científica da forma expositiva vem associada à apresentação de seminário ou conferência que aparenta se passar em sala de convenção ou sala de aula, ainda que sugira a neutralidade de um ambiente com uma cadeira e uma mesa discretas, além da luz invariável. Os atores Lara Matos, Lucas Heymanns e Marco Antoni