Pular para o conteúdo principal

Aberração

foto: Elenize Dezgeniski
Cena de A besta fera, com o Teatro Jabuti, de Florianópolis



O Teatro Jabuti, que tem doze anos de atividades em Florianópolis, apresentou uma cena, ou melhor, um número de circo que destoou do conjunto da Mostra até aqui. Constrangeu com seu pouco jogo de cintura para lidar com o universo circense a que se propunha, visto com muita estreiteza, e ainda por cima flertar com o teatro de rua, que tampouco disse a que veio num palco italiano. A besta fera resultou uma coleção de equívocos.

Nem o nariz-de-palhaço demove o domador/apresentador da falta de empatia, ao lado da musicista que toca acordeão e pandeiro. A fera anunciada é um boneco de Jabuti com um cabeção, um casco agigantado e de todo mal-ajambrado na operação de dois manipuladores, “visíveis” o tempo todo, num registro grosso do que se espera minimamente do teatro de animação.

A premissa é boa, vá lá. A cena prepara com suspense a chegada do animal, a grande atração daquelas lonas. Poucos minutos depois de revelá-lo, porém, o roteiro desanda, não convence no antagonismo do título que tenta sugerir naquela relação de forças homem-animal. A fragilidade se impõe, principalmente nos parcos recursos dos intérpretes, tornando o tempo mais arrastado – e não por culpa dos passos até acelerados do pobre jabuti.

Dia desses, assisti ao filme O homem elefante, de David Lynch, todo rodado em preto-e-branco, em que visita a exploração das deformidades de um homem sem cair no sensacionalismo de expor o personagem em closes ou afins. O horror transparece mais pelo olhar do outro. Faquires em camas de prego e outros artistas da fome, freaks, aberrações, laivos de uma Revolução dos bichos, nada disso foi visitado em A besta fera, mas deu o que pensar nessas alternativas, nessas leituras que, quem sabe, levasse o Teatro Jabuti a um projeto experimental mais consistente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Coração acéfalo/Boca desgarrada - Companhia Subjétil

A cena da Companhia Subjétil apresenta uma característica interessante dentro do contexto da Mostra: a construção da dramaturgia para os sugeridos 15 minutos de apresentação em uma dinâmica coerente com a utilização do tempo. Na maior parte das outras cenas assistidas até agora, mesmo nas que foram pensadas especificamente para a Mostra, a duração ficou um pouco marcada como uma premissa externa – seja por insuficiência de tempo para que o espectador encontre um fio condutor para si, seja por uma tentativa de preencher os quinze minutos com o maior número possível de signos. “Coração acéfalo/Boca desgarrada” tem uma cadência própria. Em outras apresentações, os 15 minutos foram divididos em mais de uma cena, às vezes cada uma com uma tônica diferente. Isso não é necessariamente um problema, afinal a Mostra abre possibilidades para uma variedade de propostas, mas dentro de um horizonte de convivência, me pareceu que essa particularidade da cena da Companhia Subjétil fez uma diferença pa

Sem pena

O performer Zé Reis na provocadora cena 'Pós-Frango'  }  Elenize Dezgeniski A objetificação da mulher é tão brutal na sociedade machista que quando ocorre o inverso – o corpo masculino tratado como carne na vitrine –, poucos se dão conta. A performance Pós-frango faz uma articulação estética e filosoficamente bem urdida dessa espécie de contradição. O ator e dançarino Zé Reis, da companhia brasiliense Errante, perpassa imagens figurativas e disruptivas. Pelado, ele alude a estereótipos e convenções a partir de um corpo escultórico, evidenciando músculos que servem ao gogo boy ou ao fisiculturismo. E à arte, claro. Como as aparências enganam, mas, enfim, aparecem – já dizia Leminski –, os desfazimentos dessa plasticidade fútil por volumes e relevos outros tornam as suspensões poeticamente forjadas nesse mesmo corpo sobreposições maleáveis e sofisticadas desse mesmo material capturado do registro grosso da paisagem urbana. Estendido de uma ponta à outra na dianteira do palc

Zona erógena e cócegas

Cena  parte de texto de catalão e é dirigida por André Carreira }  Elenize Dezgeniski Em “Romeu e Julieta”, o frei Lourenço afirma que “Esses prazeres violentos têm finais violentos/ E, em seu triunfo, morrem como o fogo e a pólvora./ Que se consomem quando se beijam”. Para além do fundo histórico e social da tragédia, a impossibilidade da consumação do amor juvenil em Shakespeare talvez nos diga mais sobre a sabotagem dos desejos na contemporaneidade. Um prolongado beijo entre personagens que se dizem irmãos, ele e ela, é um dos múltiplos ruídos propositalmente desestabilizadores em “La Belle Merde”, do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis. A objetividade científica da forma expositiva vem associada à apresentação de seminário ou conferência que aparenta se passar em sala de convenção ou sala de aula, ainda que sugira a neutralidade de um ambiente com uma cadeira e uma mesa discretas, além da luz invariável. Os atores Lara Matos, Lucas Heymanns e Marco Antoni