Pular para o conteúdo principal

Concha acústica

Ao fundo, Luana Raiter puxa o fio da meada da cena } Elenize Dezgeniski

A estudante Alice, de 11 anos, sempre viu a arte da performance (e por extensão, das coirmãs dança e teatro) sob intempéries. O vento, o sol, a garoa e até possivelmente as nuvens já influenciaram sua maneira de relacionar-se com os artifícios da cena que os pais, a performer Luana Raiter e o diretor Pedro Bennaton, plantam em seus trabalhos criativos desde que ela se conhece por gente, quer na cidade aonde vive, Florianópolis, quer em circulação. “Essa fumaça é normal”, perguntou Alice na noite anterior, diante da propagação de gelo seco vindo do fundo do palco, sentada ao lado do jornalista na plateia do Teatro Zé Maria Santos. O lugar a partir de onde se vê, na perspectiva da definição milenar – eis o lugar recém-descoberto pela filha dos também dramaturgos do ERRO Grupo. Ele tem quatro anos a mais, 16, em relação à primogênita que esbanja curiosidade e inteligência imersa nos admiráveis mundos novos que encontrou durante aqueles dias e horas de presença na Mostra Cena Breve Curitiba – A Linguagem dos Grupos de Teatro. E como ela, Luana e Pedro estão em pleno estágio de reconhecimento de outras mediações com o espaço da cena, agora instigados a experimentar um teto que não o céu costumeiro. “Exercícios Para Dias de Chuva: Conversa Mamífera” estimulou o público a sentar no palco e lá celebrou seu intento: colocar uma historia pessoal na roda – no caso, um aglomerado de dezenas – de modo a suscitar entre os ouvintes a centelha que despertasse o desejo de compartilhar fatias de vida. A performer contou o quão fora afetada ao assistir a um documentário televisivo sobre o mundo animal e deparar com a resistência e o instinto de sobrevivência de uma leoparda no meio do mato. Instaura-se a não representatividade, elogia-se o ato de narrar – “O importante é falar de você”, chega a dizer Luana. E logo pipocam vozes contaminadas pela dinâmica. Uma das mais tocantes foi a do filho que viu sua mãe chorar quando, certa manhã, ao arrumá-lo em criança para ir à escola, perguntou por que a matriarca daquela família empobrecida sempre usava o mesmo vestido. Outra voz, a de um sobrinho, relata o quanto gostava da tia que passou a evitar nos últimos tempos por causa das diferenças de visões políticas no atual panorama do país. Em suma, sob o risco de descontrole da massa retirada de sua zona de conforto, instada a ir ao chão emblematicamente horizontal e se permitir trocas confessionais, o ERRO extrai dessa ação o milagre da onda propagada pela pedrinha atirada ao lago. A conquista da atenção e da escuta ativa em ambiente informal é uma das raridades em nossos dias líquidos. O elementar se precipita com mais substância quando aqueles que o ambicionam já gastaram muita sola na estrada e na cachola. (Valmir Santos)

A cozinheira Flor (esquerda) convida o público para ir ao seu bistrô } Elenize Dezgeniski

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Coração acéfalo/Boca desgarrada - Companhia Subjétil

A cena da Companhia Subjétil apresenta uma característica interessante dentro do contexto da Mostra: a construção da dramaturgia para os sugeridos 15 minutos de apresentação em uma dinâmica coerente com a utilização do tempo. Na maior parte das outras cenas assistidas até agora, mesmo nas que foram pensadas especificamente para a Mostra, a duração ficou um pouco marcada como uma premissa externa – seja por insuficiência de tempo para que o espectador encontre um fio condutor para si, seja por uma tentativa de preencher os quinze minutos com o maior número possível de signos. “Coração acéfalo/Boca desgarrada” tem uma cadência própria. Em outras apresentações, os 15 minutos foram divididos em mais de uma cena, às vezes cada uma com uma tônica diferente. Isso não é necessariamente um problema, afinal a Mostra abre possibilidades para uma variedade de propostas, mas dentro de um horizonte de convivência, me pareceu que essa particularidade da cena da Companhia Subjétil fez uma diferença pa

Sem pena

O performer Zé Reis na provocadora cena 'Pós-Frango'  }  Elenize Dezgeniski A objetificação da mulher é tão brutal na sociedade machista que quando ocorre o inverso – o corpo masculino tratado como carne na vitrine –, poucos se dão conta. A performance Pós-frango faz uma articulação estética e filosoficamente bem urdida dessa espécie de contradição. O ator e dançarino Zé Reis, da companhia brasiliense Errante, perpassa imagens figurativas e disruptivas. Pelado, ele alude a estereótipos e convenções a partir de um corpo escultórico, evidenciando músculos que servem ao gogo boy ou ao fisiculturismo. E à arte, claro. Como as aparências enganam, mas, enfim, aparecem – já dizia Leminski –, os desfazimentos dessa plasticidade fútil por volumes e relevos outros tornam as suspensões poeticamente forjadas nesse mesmo corpo sobreposições maleáveis e sofisticadas desse mesmo material capturado do registro grosso da paisagem urbana. Estendido de uma ponta à outra na dianteira do palc

Zona erógena e cócegas

Cena  parte de texto de catalão e é dirigida por André Carreira }  Elenize Dezgeniski Em “Romeu e Julieta”, o frei Lourenço afirma que “Esses prazeres violentos têm finais violentos/ E, em seu triunfo, morrem como o fogo e a pólvora./ Que se consomem quando se beijam”. Para além do fundo histórico e social da tragédia, a impossibilidade da consumação do amor juvenil em Shakespeare talvez nos diga mais sobre a sabotagem dos desejos na contemporaneidade. Um prolongado beijo entre personagens que se dizem irmãos, ele e ela, é um dos múltiplos ruídos propositalmente desestabilizadores em “La Belle Merde”, do Grupo Teatral (E)xperiência Subterrânea, de Florianópolis. A objetividade científica da forma expositiva vem associada à apresentação de seminário ou conferência que aparenta se passar em sala de convenção ou sala de aula, ainda que sugira a neutralidade de um ambiente com uma cadeira e uma mesa discretas, além da luz invariável. Os atores Lara Matos, Lucas Heymanns e Marco Antoni